1. “Este não é tempo para a indiferença, porque o mundo inteiro está a sofrer e deve sentir-se unido, ao enfrentar a Pandemia” (Papa Francisco). É inegável que a COVID-19, mudou a forma e o ritmo habitual das nossas vidas.
O risco de ser contagiado e contagiar outros, obrigou-nos a assumir um comportamento completamente novo aos mais diversos níveis da vida em sociedade. Efetivamente, são bem conhecidas as consequências da sua ação: inúmeras mortes e a impossibilidade de realizar funerais com a presença de familiares e amigos; a doença impiedosa, com internamentos prolongados, sem a possibilidade de receber visitas; o confinamento e a impossibilidade de trocar gestos de afeto até entre os familiares, desde as crianças aos idosos; a paragem da vida em sociedade e da economia, com efeitos nefastos no mundo das empresas e na manutenção de postos de trabalho.
A própria Igreja está a viver tempos novos. Atenta aos sinais deste tempo e na escuta das inquietações e angústias do homem de hoje, a Igreja é chamada a levar a todos o conforto da fé e do pão partilhado, a confiança e a esperança em dias melhores pelo contágio do amor de Deus manifestado em Cristo ressuscitado, mobilizando todos os seus membros para a linha da frente para vencer a indiferença, na resposta aos anseios mais profundos, que brotam do coração humano. O núcleo essencial da realização da missão da Igreja consiste em proporcionar a todos o encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, verdadeiro coração do Evangelho, fonte de esperança e de alegria plena. Com o Papa Francisco temos consciência de que “a pior descriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual” (EG 200). Reconhecemos, igualmente, que é muito difícil anunciar o Evangelho a quem faltam bens de primeira necessidade, como consequência do desemprego crescente, que começa a produzir efeitos nefastos em muitas famílias. Impõe-se a abertura ao Espírito, gerador de criatividade e fidelidade, seja no anúncio do Evangelho e na celebração da fé, seja nos gestos de acolhimento, compaixão, consolação e partilha de bens.
2. É opinião unânime que a economia mundial está há muito desequilibrada, situação agravada ainda mais por esta Pandemia. No caso português a economia entrou em recessão, registando uma queda no Produto Interno Bruto de 16,5% no 2º trimestre deste ano, segundo o Instituto Nacional de Estatística, sendo que a crise que se vive é já reconhecida como mais grave que a crise financeira de 2012, em termos dos efeitos negativos sobre as economias e o aumento do desemprego.
3. O turismo, um dos mais importantes setores de atividade do nosso país e o mais importante na nossa região do Algarve, foi severamente atingido e há poucas expetativas de melhoria da situação, o que se concretiza num aumento invulgar do desemprego nesta época do ano, com o aumento a rondar as 100 mil pessoas, o que corresponde a nível nacional, a mais 29% de desempregados (406.665 desempregados).
É evidente que o Algarve é uma das regiões mais afetadas, estimando-se um nível assustador de destruição de postos de trabalho, de 40% ou mais, já que possui hoje uma estrutura produtiva muito centrada no turismo e nas suas áreas afins (hotelaria, restauração, rent-a-car, transportes, comércio, entre outros) e os números do desemprego em junho mostravam uma subida de 232% em comparação com 2019 (mais de 27.000 desempregados).
Um número expressivo de hotéis e outros alojamentos possuem taxas de ocupação entre 10% e 20%, outros não chegaram a abrir os estabelecimentos, ou abriram apenas alguns (cadeias hoteleiras). Ao nível do sector da restauração e similares, a situação é ainda mais difícil, pois viram os turistas não residentes desaparecer, mas também os clientes locais, pela insegurança e falta de rendimento, que reduziram muito estes consumos. Muitos falam, hoje, na forte possibilidade de fecho permanente, de outubro em diante, mesmo admitindo algumas melhoras na procura turística verificada ao longo do mês de agosto, sobretudo de nacionais, mas mesmo assim muito inferior aos números habituais dos últimos anos. Regista-se o louvável e admirável empenho de todos, empresários e trabalhadores, em contrariar esta tendência, com criatividade e abnegação, mesmo reconhecendo a difícil missão que os espera.
Os números espelham as várias histórias de vida, de muitas mulheres e homens que trabalhavam no Verão para conseguirem sobreviver o resto do ano e que agora viram, de forma abrupta, o seu sustento suspenso ou reduzido, encontrando-se sem quaisquer perspetivas de melhoria no curto prazo. Dão-nos conta disso não só as associações empresariais e a comunicação social, mas sobretudo, as pessoas que se nos dirigem pedindo ajuda, nomeadamente nas instituições ligadas à Igreja, como a Cáritas Diocesana e as Cáritas Paroquiais, os Vicentinos, os grupos socio caritativos paroquiais, os refeitórios sociais… Tudo isto faz com que atualmente se viva já uma emergência social no Algarve.
4. Traçado este cenário, para que melhor pudéssemos compreender a realidade que atualmente nos rodeia, queremos, enquanto Igreja Diocesana, deixar a todos uma palavra de esperança e dizer-vos que queremos ser parte ativa não só na reflexão sobre este problema, que é de todos, como também na nossa mobilização para a linha da frente, no apoio aos mais necessitados, para reerguer a vida pública, familiar e cristã. Estamos todos no mesmo barco e fazemos todos, sem exceção,
parte da grande família humana, que precisa de todos para minorar os efeitos desta Pandemia e vencer a COVID-19.
A par duma reflexão como comunidade sobre o que, neste contexto, é “realmente importante e necessário”, há que responder “com solidariedade e fraternidade”, como nos recorda repetidamente o Papa Francisco, sabendo que não se conseguirá recomeçar e reconstruir, como afirma a Conferência Episcopal Portuguesa, sem uma “solidariedade efetiva”, como meio imprescindível para vencer esta crise. Este tempo de exceção requer que se repensem, «os alicerces em que assenta a sociedade», «não desperdiçando o que ela tem de positivo e corrigindo as suas disfunções e injustiças». Esse recomeço passa necessariamente por não esquecer o valor inestimável de cada vida humana, a riqueza da vida dos idosos, a redescoberta do papel da família, o papel do Estado, mas também o da sociedade civil neste reerguer da nossa vida. Ou seja, passa por compreender que a comunhão é geradora de vida e só através dela conseguiremos, enquanto grupo e pondo a render as virtudes e talentos de cada um, dar resposta aos problemas e caminhar num sentido positivo.
5. O Algarve tem carências elevadas nas respostas sociais e na área da saúde, que urge colmatar. Não só o sistema económico e social vigente deve colocar a pessoa humana no centro da sua atuação, mas a saúde pública deve procurar a equidade e ser reforçada na região. É tempo de fazer diferente. É tempo, como diz o Papa, de ser solidário na verdadeira e mais profunda acessão da palavra. É tempo de valorizar o que é nosso, não esquecendo as festas e tradições, ainda que as vivendo de modo distinto, consumindo produtos locais, fazendo aqui as suas férias, usufruindo da gastronomia regional na restauração, visitando os nossos monumentos e museus, cumprindo sempre as normas de segurança e os cuidados previstos para este tempo. Deste modo, estaremos a construir a comunhão e a ajudar o próximo, estaremos a reerguer a economia do nosso Algarve, sem deixar de beneficiar do necessário descanso, bem como do convívio e da presença reconfortante dos que mais gostamos.
Estamos certos, de que os nossos governantes saberão avaliar e compreender a realidade especial que se vive nesta região e encontrar fórmulas apropriadas para ajudar a preservar empregos e fazer a economia retomar o seu crescimento. Confiamos que exercerão com assertividade o papel, que também a Igreja lhe reconhece na sua Doutrina Social, já que o tempo é curto e não se compadece com normas administrativas complexas e exigentes. Quando um náufrago pede socorro não espera promessas de ajuda, sujeitas a uma burocracia desencorajante, mas que lhe seja lançada uma boia de salvação e urgentemente ajudado a sair da situação em que se encontra.
6. A consciência de que vivemos momentos difíceis leva-nos a apelar à união, ao espírito de comunidade e a ter esperança na redescoberta de novos caminhos, em que os interesses comuns prevaleçam sobre ideologias ou interesses particulares.
Aos cristãos cabe uma responsabilidade particular. O serviço socio caritativo não pode reduzir-se a uma simples atividade de assistência social. Trata-se de uma“dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria essência”. A Igreja, enquanto família de Deus no mundo, não pode permitir que nenhum dos seus membros fique indiferente, face a alguém que, seja ele quem for, sofra por falta do necessário. A parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado «por acaso» (cf. Lc 10, 31 (cf Bento XVI, Deus Caritas est, 25).
Manifesto o meu apoio e exorto todo clero algarvio, particularmente os nossos párocos com os leigos que os assistem, a que avaliem sobre a necessidade de uma reestruturação do serviço socio-caritativo, se necessário, de modo que toda a comunidade se sinta na linha da frente, comprometida e empenhada na resposta às emergências sociais já existentes ou que, porventura, possam vir a surgir ou a aumentar, sempre abertos a trabalhar em rede com outras instituições com a mesma finalidade. Esta mesma tarefa é indicada, de modo explícito, a toda a Diocese pelo nosso Programa Pastoral para o próximo ano.
Manifesto o meu apoio e exorto, igualmente, a Cáritas Diocesana e o Departamento de Pastoral Social a coordenar e a implementar ainda mais este serviço na Diocese, de modo que, como Igreja diocesana, pela partilha de bens e apoio aos mais necessitados, possamos corresponder à missão que Cristo nos confiou e a sociedade algarvia espera, hoje, de nós.
Todos acreditamos que o Algarve é uma região única e especial, para residentes e visitantes, com ofertas de excelente qualidade: as pessoas, a natureza, a história, o património religioso, a gastronomia… Faz parte da nossa missão, enquanto cristãos, criar sinergias solidárias e fraternas, geradoras da esperança que anima e fortalece. Também hoje, Cristo continua a repetir-nos, fragilizados pela “tempestade” que se abate sobre a humanidade: “tende coragem, sou Eu; não tenhais medo!” (Mt 14,27).
+ Manuel Neto Quintas, Bispo do Algarve
Faro, 15 08.2020, Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria