Prefiro a misericórdia ao sacrifício (Mt 9,13; Os 6,6)
- A consciência de nos sabermos e sentirmos amados por Deus – vede com que amor o Pai nos amou (1 Jo 3,1) – constitui a motivação mais mobilizadora do caminho de conversão que a Liturgia, em tempo de Quaresma, nos convida a percorrer. A recomendação de Cristo, repetida em diversas situações – prefiro a misericórdia ao sacrifício (Mt 9,13; 12,7) – e ilustrada com diversas parábolas (Lc 10,29-37; 6,36-38; 15,1-32), é a proposta que proponho como inspiradora deste caminho quaresmal: não nos determos no exterior e superficial, mas procurarmos e assumirmos o que efetivamente conduz a uma mudança de atitudes e gestos. Queremos, igualmente, ter presente a Mensagem quaresmal do Papa Francisco. Nela encontramos estímulo para este caminho e a oportunidade de, em comunhão com toda a Igreja, enfrentarmos o mal-estar provocado pela “globalização da indiferença”, assente numa atitude egoísta à escala mundial, com consequências profundamente gravosas para os mais desfavorecidos.
- O termo “misericórdia” exprime um conjunto de laços – bondade, benevolência, perdão, afeto, fidelidade – que unem os membros da mesma comunidade ou povo. No contexto de Aliança traduz o sentido do amor gratuito de Deus para com o seu povo (cf Dt7,9; 9, 6; Is 54,10); como atributo de Deus exprime a sua predileção pelos mais pobres e pelos pecadores (Is 14,1-2; 49,13-15).
Em Cristo, torna-se particularmente visível a misericórdia do Pai. Ele confere, com o seu estilo de vida e as suas ações, o sentido definitivo atribuído pela tradição do Antigo Testamento à misericórdia divina. Manifesta o amor de Deus presente e operante no mundo, amor dirigido a todos, mas revelando-se mais forte no contacto com o sofrimento, a injustiça e a pobreza, com as condições históricas da humanidade, as suas limitações e fragilidades, tanto físicas como morais, acolhidas e assumidas pela misericórdia de Deus. Cristo não só se lhe refere através de comparações e parábolas (Jo 10,7s; Lc 7,48; 15,1ss), como Ele próprio encarna e personifica a misericórdia divina. Para quem n’Ele a vê – e n’Ele a encontra – Deus torna-se particularmente visível como um Pai rico em misericórdia (cf Ef 2,4). Tornar presente o Pai como amor e misericórdia, constitui na consciência do próprio Cristo, ponto fundamental do exercício da sua missão messiânica (cf DM 3). Confirmam-no as palavras por Ele pronunciadas, desde a Sinagoga de Nazaré (cf Lc 4,18) até ao perdão concedido na cruz, aos que “não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
- A Quaresma vem recordar-nos, através dos insistentes apelos da Palavra de Deus, que somos chamados não só a experimentar e a celebrar a misericórdia de Deus, mas também a ser misericordiosos com os outros. A misericórdia, como resposta à misericórdia de Deus, é mais importante que os atos de culto (cf Os 6,6, Mt 5,7; Lc 6, 38; 15,1ss). Transformar “os lugares onde a Igreja se manifesta – as nossas paróquias e comunidades – em ilhas de amor e misericórdia no meio do mar da indiferença” é o desejo e apelo quaresmal do Papa Francisco na sua mensagem. A superação da indiferença torna-se possível com um coração misericordioso: forte e firme, fechado ao tentador mas aberto a Deus, impregnado pelo Espírito que conduz aos outros; um coração pobre que conhece as suas limitações e se gasta pelo outro. A partilha, como sinal de conversão pessoal, assume a expressão concreta da misericórdia e da caridade: ao partilhar o que temos e o que somos, experimentamos a plenitude da vida que provém do amor misericordioso, pelo qual tudo nos é retribuído como bênção de perdão, paz e alegria interior. “A caridade cobre a multidão dos pecados” (1 Pd 4, 8). A partilha, ao nos aproximar dos outros, aproxima-nos também de Deus e torna-se instrumento de autêntica conversão e reconciliação com Ele e com os irmãos.
- Nestes últimos anos orientámos o contributo recolhido pela nossa renúncia quaresmal para o Fundo diocesano social, destinado a apoiar famílias atingidas pelo desemprego, pelos motivos conhecidos. Foram atendidos 278 processos, devidamente selecionados e acompanhados pela comissão encarregada, com a distribuição de 170.757,20€, quantia recolhida com esta finalidade. A renúncia quaresmal de 2014 atingiu a quantia de14.274,86€.
Este ano, pelo fato de estarmos a beneficiar do Fundo Social da Conferência Episcopal, para o qual contribuem, através de transferência bancária, muitos algarvios, a nossa renúncia quaresmal, seguindo a indicação do Conselho Presbiteral, terá um duplo destino: o Vicariato da Pedra Mourinha, comunidade necessitada de ajuda urgente para prosseguir a construção da igreja; apoiar, com outras dioceses portuguesas, vinte e cinco Centros de Recuperação Nutricional da Guiné-Bissau, um projeto da Igreja local, liderado pela Fundação Fé e Cooperação (FEC) e direcionado para a assistência a crianças (cerca de 60.000) e suas famílias. Podeis encontrar informação detalhada sobre este projeto nas vossas paróquias.
O contributo, à semelhança dos anos anteriores, pode ser entregue nas Paróquias ou através de depósito bancário (NIB 001800000617213600178). Apelo à generosidade de todos. A partilha é também expressão duma “Igreja em saída” querida pelo Papa Francisco: uma Igreja centrada em Jesus Cristo e na entrega aos pobres (cf EG 97); uma Igreja com um olhar solidário para contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias; uma Igreja que cultiva a proximidade e a arte do acompanhamento, e os seus membros aprendem a descalçar as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf Ex 3, 5). O nosso caminhar deve ter o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã (cf EG 169).
Possa este tempo quaresmal unir-nos no caminho da conversão pessoal, através duma oração mais intensa e de gestos de misericórdia e de caridade para com todos. E que o Espírito Santo, dom de Cristo ressuscitado, nos ilumine e fortaleça neste caminho, tornando-nos mensageiros do amor e da misericórdia do Pai.
+ Manuel Quintas, Bispo do Algarve
Quarta-feira de Cinzas, 18.02.2015