Deserto

Lia a passagem de S. Marcos sobre a Paixão (Mc, 14:26-53). Contemplava Jesus no Jardim do Getsémani. Olhava para Ele, prostrado no chão, rezando ao Pai. Ali, ao seu lado, como se fosse um dos discípulos que o acompanhava, vi no rosto do Senhor uma dor profunda, mas sobretudo, o medo tão humano que nós conseguimos sentir e identificar imediatamente, sempre que ele nos assalta. Por uns segundos, muito, muito breves, Ele olhou para mim e esse olhar trazia a confirmação de que ser-se humano não é ser-se frágil, mas o contrário: é encontrar nos nossos sentimentos e características – mesmo no medo -, a força que também Ele teve para se superar e vencer. Para tudo vencer. Como venceu o Demónio, nos quarenta dias que passou no deserto.

Esse tempo, que tantos gostam de comparar à Quaresma, não é um tempo de sofrimento, mas um tempo de esperança, um tempo de solidão e reflexão, mas onde a determinação, a capacidade de olhar para si mesmo são mais exigentes e necessárias.

Volto a pensar em mim. Este ano foi um ano de deserto, um ano em que revi as minhas prioridades, as minhas opções, o caminho que queria seguir. Olhei para trás e perspetivei o futuro. Senti que ganhava novas forças a cada momento, porque o deserto não é vazio. Nele estamos nós e tudo o que trazemos na nossa bagagem: os afetos, as ideias, os valores, as pessoas. E tudo age para que, dando passos seguros, o caminho nos permita ver a estrada que está ali, no final da linha da areia. Sobretudo as pessoas, que vão fazendo o percurso ao nosso lado.

O deserto não é silencioso. Ao contrário. Nele ouvimos todas as vozes que preenchem a biblioteca das nossas memórias e, com elas, refazemos pedaços da nossa história. Essas vozes, que nos envolvem como uma brisa suave, ajudam-nos nesse percurso, a redefinir o nosso próprio timbre vocal e as nuances que o mesmo pode ter. E, sobretudo, ouvimos a voz do Senhor: – «Confia! Tudo é possível àquele que crê (Mc 9:23)! Eu venci o mundo (Jo 16:33)!»

O deserto não é estéril. Nele tudo está escondido ao olhar dos que procuram o óbvio, mas ele tem o potencial de florir. Quer seja numa pequena flor perdida, que nos surpreende pela cor e nos recentra naquilo que é essencial; quer quando encontramos longos tapetes coloridos e percebemos a majestade da criação, a beleza do que nos rodeia e a manifestação dos maravilhosos poderes criativos de Deus. E o coração enche-se da capacidade de louvar. Tudo isto faz parte do deserto.

O deserto é o caminho, não o final, mas é metáfora do tempo em que o Pai nos carrega amorosamente (Dt 1:31), levando-nos, para que nos aperfeiçoemos, cuidando e expressando de forma subtil, mas sempre clara, o quanto nos ama.

Foi por este deserto que descrevo, que Jesus também passou. E se no Getsémani vislumbrei o sofrimento naquele olhar que eternamente me acompanha, aqui vejo a capacidade que teve de colocar nos lábios um sorriso discreto, fintando as dificuldades e as tentações e, realizando uma interiorização profunda e absolutamente sincera, geradora de uma força, uma segurança e uma firmeza capazes de O levar a iniciar um percurso intenso de conversão dos outros, de missionação, de disseminação da Palavra. Não deixou que o sofrimento habitasse nele. O homem Deus, que foi Jesus, conhecia-se e sabia onde estavam as armadilhas quotidianas do pecado. E venceu-as, por um Amor maior.

Isto é Quaresma. E não é sofrimento.

 

Fonte: https://agencia.ecclesia.pt/

Autor: Sandra Côrtes-Moreira, Diocese do Algarve

Check Also

Nota Pastoral na comemoração dos cinquenta anos do “25 de Abril”

1. Na comemoração do cinquentenário da Revolução de 25 de Abril de 1974 cabe aos …

Sahifa Theme License is not validated, Go to the theme options page to validate the license, You need a single license for each domain name.