Cheguei à pousada e eram 22h. Estavam 28ºC. Subi até ao segundo andar na expectativa de chegar ao quarto e ligar o ar condicionado para refrescar o corpo. Abri a porta, entrei, procurei e não encontrei. Durante estes dias, só me restava saber aprender a suportar o calor. Fala-se muito de alterações climáticas, mas só nos apercebemos do que significam quando as sentimos na pele. E se o consumo de energia já estava a aumentar quando havia ainda tempo para fazer alguma coisa pelo aquecimento global, mais aumentará quando for necessário para evitar o colapso do corpo. Mas a emergência climática precisa de um suporte espiritual.
Num pequeno livro sobre “Il sogno (folle) di Francesco” — «O Sonho (louco) de Francisco» —, o físico Luca Fiorani diz que «a ânsia, em vez de nos impulsionar a agir com lucidez, bloqueia-nos na impotência: por vezes, também as situações mais dramáticas enfrentam-se melhor com um sorriso nos lábios.» Diante do calor imenso sentido neste período, e aquele que encontrei quando entre no quarto, se não for o sentido mais elevado das coisas que nos leve a sorrir, como poderemos suportá-las? Fiorani afirma que o «o optimismo cristão está fundado sobre a fé num Deus-Amor. (…) Não podemos pensar que aquele Amor que criou o cosmos, unindo-se intimamente a esse na plenitude dos tempos, o abandone a um destino destrutivo: as sementes do bem — plantadas pelo próprio Deus — acabarão por germinar, florir e dar fruto.» O optimismo diante da adversidade parece-me fazer parte do suporte espiritual necessário para enfrentar a emergência climática.
Numa notícia publicada pela New Scientist (14/Mai, p. 8), vários indianos contam a sua experiência de vida durante a onda de calor. Hemraj é jardineiro no Campus da Universidade Shiv Nadar próxima de Delhi e conta como às duas da tarde, próximo do pico de calor, ele continua no exterior a trabalhar — «Eu não sinto o calor ou o frio. Em vez disso, concentro-me no trabalho.» — Por isso, uns minutos mais tarde, Hemraj começa a notar como as folhas se queimam pelo ardor do Sol, e começa a sentir o solo quente através dos seus sapatos. Bebe muita água. Mantém a sua cabeça coberta e faz intervalos para superar o calor intenso. Ou seja, habituou-se ao calor, enquanto que as pessoas com ar condicionado dificilmente conseguiriam fazê-lo. Neste jardineiro sente-se o optimismo que provém do reconhecimento da necessidade de nos adaptarmos às adversidades. Não se insurge contra o poder político que podia fazer alguma coisa pelas alterações climáticas ou pela melhoria das condições de vida das pessoas. O justo ajusta-se, e muito embora seja debatível, a atitude de nos adaptarmos não é só evolutiva, como é, também, profundamente espiritual.
As alterações climáticas exigem, também, adaptações climáticas. E a fé num Deus criador, e que cria ainda, não pode deixar de se deslumbrar com a emergência daquilo que é novo. As ondas de calor geradas pelas alterações climáticas são uma novidade, mas provêm de um fenómeno natural de natureza antropogénica. A culpa é nossa por muito que isso nos custe reconhecer, mas o modo como adaptamos os estilos de vida está também ao nosso alcance. Quando vejo alguém acelerar sem necessidade e usa uma viatura com um motor de combustão, fico a pensar na insensibilidade que tem relativamente à sustentabilidade do seu estilo de vida. Será que se experimentasse 40ºC durante cinco dias seguidos, não tivesse acesso a ar condicionado, e tomasse consciência de que as suas “aceleradelas” contribuíram para isso, mudaria? Ou será a globalização da indiferença uma realidade antropológica mais forte? Uma indiferença que leva muitas pessoas a viverem o presente, sem qualquer sensibilidade relativamente às repercussões que as suas atitudes podem ter no futuro, leva à necessidade de gerar diferença para superar a indiferença.
A espiritualidade ecológica aumenta a sensibilidade interior que impulsiona muitas das nossas atitudes exteriores. E quando a associamos à educação ecológica, procuramos, com curiosidade, o que podemos fazer para saber aprender a suportar o calor, explorando quais as atitudes que diminuem o impacte das nossas acções sobre o clima.
Pela manhã, quando ar está mais fresco e com uma temperatura menor, abro a janela do quarto da pousada. A brisa suave que entra recorda-me a palavra ”Ruah” que usamos para expressar como o Espírito Santo é sopro. O ar fresco entra porque é mais denso do que o ar aquecido do quarto, fazendo pensar na densidade de sentido e significado que tem quando deixamos Deus actuar dentro de nós e informar as nossas atitudes. E à noite, quando a temperatura do ar desce, faço a mesma experiência de aclimatização do quarto e de pensamento em Deus que é Espírito (Jo 4, 24). Não é este gesto de adaptação climática uma oração?
Para muitos, unir as dimensões humanas (tecnologia, política, acção social, etc.) da sustentabilidade ecológica à dimensão espiritual (que depende da experiência e cultura de cada um) parece ser um “algo a mais”, mas gostaria de sugerir que se retirasse o artigo “a” dessa expressão — é um “algo mais”.
A espiritualidade é um “algo mais” que faz parte da natureza humana. O desenvolvimento tecnológico que nos permite superar as dificuldades da emergência climática e contribuir para alterar os nossos estilos de vida, não está ausente do sentido interior (espiritual) com que fazemos cada coisa. Podemos achar que isso é do foro pessoal, mas nada somos sem os relacionamentos que estabelecemos uns com os outros. Por isso, tudo o que é pessoal é relacional. E cuidar do interior repercute-se no exterior.
Saber aprender a suportar o calor nestes dias tem-me ensinado que o ser humano é feito de ritmos e assemelha-se à água que se adapta à forma do vasilhame que a contém. Quando enrijecemos os nossos comportamentos, quebramos diante da necessidade de nos adaptarmos. Não é necessário. Ao deixar que a dimensão espiritual se desenvolva dentro de nós, é como absorver a pouca água existente, e ao nosso alcance, para que humedeça a terra ressequida interior, de modo a que amoleça, e se adapte melhor às circunstâncias, repensando os estilos de vida.
Fonte:https://agencia.ecclesia.pt/
Autor: Miguel Oliveira Panão