Partir de si

O relato da Criação, no primeiro capítulo do livro do Génesis, apresenta uma expressão central para captar o sentido da proposta católica sobre questões relativas ao sentido da vida humana – «Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança’».

É preciso admitir que se tem falhado, muitas vezes, naquilo que se procura propor, teologicamente, a partir desta passagem, excessivamente centrados numa dimensão corpórea e esquecendo algo que devia ser fundamental: fá-los à sua imagem e semelhança porque os faz comunidade.

Esta era uma consideração apresentada por São João Paulo II: desde a origem, o ser humano não é a imagem que reflete a solidão de uma Pessoa que rege o mundo, mas é essencialmente a imagem duma comunhão divina. Deus não é um ser solitário, ainda que omnipotente, mas uma comunhão de pessoas.

Que significa, para o ser humano, esta imagem e semelhança? A nossa história ensinou-nos que fomos feitos para sair de nós, do ponto de vista físico e emocional. Existe, talvez, uma erosão do sentido do outro, uma crise do amor, no mundo atual, cada vez mais virado para a exposição ininterrupta do eu.

Chega-me esta reflexão num momento em que vislumbro um mundo cada vez mais isolado. Em que, no limite, a pessoa fica sozinha de si, sem ser capaz, sequer, de se encontrar consigo própria.

De certa forma, a ausência de diálogo interior, de coisas por descobrir, de novas palavras, de declinações de si próprio, é um partir… Mas não é um partir de si rumo ao outro, é mesmo um quebrar: é uma não-presença que deixa, talvez, o maior dos vazios. Uma ferida que não fecha sem partir de novo.

O bispo e poeta madeirense José Tolentino Mendonça ensina a valorizar a experiência do caminho, sabendo habitar a tensão, viver dentro da procura. O testemunho da ferida, da pergunta, do que corta o interior de cada um, é ponte para o diálogo, para o encontro, para o serviço.

Outro teólogo contemporâneo, o sacerdote e escritor checo Tomás Halík, escreve: ‘O meu Deus é um Deus ferido’. A frase remete para a dimensão da compaixão, do Deus que ‘sofre com’ a humanidade – nunca uma entidade abstrata e distante deste mundo, sobre o qual apenas agiria através de uma espécie de força mágica, alterando acontecimentos e destinos a seu bel-prazer. Esta falsa imagem e semelhança só inspiraria atitudes de domínio e exploração do outro, mas nunca seria correspondente à proposta católica.

A capacidade de partir de si, para servir o outro, é algo que deve ser reconhecido como de origem divina e respeitado como tal. Parece fácil de entender, mas não tem sido…

 

Fonte: https://agencia.ecclesia.pt

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