Levar Deus para a praia

Desejamos as férias. Mas levar Deus connosco não é fácil. Isabel Figueiredo deixa-nos uma proposta concreta: seguir, passo a passo, os momentos de um dia e partilhar o que se vê, sente, escuta, diz. E ir dizendo a Deus o que o coração pede.

As férias são sempre aquele tempo desejado. Podem ser absolutamente distintas no modo, na cor, até no feitio. Férias pacatas, passadas no sítio de sempre. Férias arrojadas, com destinos exóticos. Podem ser cheias de azul, do céu e do mar. Ou podem ter todas as cores de outros continentes, onde o sol se põe a outra hora, e a comida é uma surpresa diária.

Podem ser dispendiosas, obrigando a longas poupanças ou contas bancárias que desconhecem limites de créditos. Podem ser tão suaves no custo, que não se diferenciam no curso dos meses. As férias são sempre aquele tempo desejado. Por novos e velhos, por famílias inteiras com os amigos de sempre, ou por famílias nucleares, por gente sozinha ou acompanhada. Porque os dias voam, porque está calor, porque vamos para a praia, porque o aeroporto, porque o aldeamento, porque os primos estão cá, porque. Até se consegue ir à Missa ao domingo. Até se mete aquele livro para ler, ou a liturgia das horas, no caso de se conseguir algum tempo de silêncio. Mas levar Deus para as férias é um desafio maior.

Os grandes desafios, passam muitas vezes, pela concretização dos pequenos passos que nos fazem lá chegar. Neste caso, o pequeno passo é o de encontrar Deus num dia de férias. Um dia escolhido na memória de outros dias, localizado no espaço, balizado por sentimentos, comuns a tantos. Um dia banal, passado em família, à beira do mar. O convite é seguir, passo a passo, os momentos daquele dia e partilhar o que se vê, o que se sente, o que se escuta, o que se diz. E ir dizendo a Deus o que o coração pedir.

SAIR DE CASA

As casas quentes do nosso Algarve, convidam a conversas pela noite dentro e é fácil dormir pela manhã. Mas naquela casa, há quem goste de abrir a janela do quarto, quando ainda nada se ouve, só mesmo a agitação dos pardais, talvez felizes pela frescura da manhã. O ritual é quase sagrado, primeiro a pausa, cotovelos poisados no peitoril da janela que dá para um pequeno pátio. Só para agradecer mais um dia que começa. Depois a saída apressada para ir buscar pão fresco. A mesa põe-se, tirando a loiça da máquina, numa rotina agradável. Ali, parece que nada custa. A pouco e pouco vão chegando, roupa amarrotada, olhos meio fechados, palavras contidas. E passam os cereais, o pão, o cheiro do café moído à antiga, o doce de abóbora, quase sem ponto, porque feito ali, quase de véspera. A mãe insiste em dar graças e ouve sons, como resposta. Não há pressas. Talvez seja a melhor refeição do dia.  Os fatos de banho e as toalhas, dobrados por mãos generosas, vão desaparecendo do monte, enquanto se repetem palavras de ordem, «vamos embora», «vamos chegar tão tarde», «onde vamos estacionar, se não se despacham?»…

O calor da noite, foi tanto que acordei várias vezes. Como serão as noites daqueles operários que apanham mirtilos todo o dia? Olha por eles, Pai do céu. A frescura do amanhecer é tão bela, o céu sem nuvens, o silêncio que nos fala de Ti.

Desta vez, vou deixá-los dormir. Gosto desta saída calada, da chave que roda de mansinho, para não incomodar. Não é nada, mas gosto desta dádiva discreta, o pão fresco pela manhã.

Esta manhã, vou tentar não repetir o mesmo pedido, subindo sempre o tom de voz. Será assim tão importante a meia-hora que quero conquistar, na chegada à praia?

A PRAIA

Depois da pausa para um café, tomado à mesa, entre a atenção a pequenos ecrãs que mostram o mundo sem limites de tempo nem de espaço, depois do café, juntam-se as “tralhas” encostadas às cadeiras e bastam alguns passos para se chegar ao areal. Em frente o mar. Entre nós e o mar, toldos e cadeiras criam uma distância aparente. Mais uma vez, é preciso optar. Vence sempre o mesmo lado, porque somos pessoas de hábitos. Quando finalmente se tiram os chinelos, é preciso escolher um sitio exacto, marcar terreno, como a natureza nos diz. Abre-se o velho chapéu, as cadeiras novas, porque as velhas ficaram esquecidas na pressa da saída para as férias tão desejadas. Há quem corra para o mar, ainda sem cheirar a creme. Há quem se sente, naquele consolo de poder ficar ali, a olhar para o mar e o mar a olhar para nós. Há banhos apressados, há banhos tão longos que a pele fica velhinha. E há caminhadas pela areia, com tempo para conversas e salpicos de água. Há caminhadas de mãos dadas, os dois a olhar para conchas partidas, para barcos que marcam o mar, para a transparência da água, sempre tão bela. Há encontros com velhos amigos e olhares discretos para desconhecidos. E as bolas de Berlim enchem os dedos de açucar, as crianças brincam, os jovens namoram e os vendedores mostram toalhas coloridas. Naquela praia, os dias parecem sempre iguais e ninguém quer outra coisa.

Andaste pela areia molhada. Chamaste homens do mar, escolheste um pescador. Dormiste em barcas, fizeste transbordar as redes. Não é possível esquecer-Te, quando pisamos a areia quente e fitamos o mar.

Estes momentos de uma solidão breve, são preciosos. Todos precisamos de um tempo só nosso. Parece impossível, mas é quase como um retiro, no meio da agitação de um dia na praia.

Aqueles passeios são fundamentais. Se a solidão é necessária, quando a opção de vida é viver a dois, passear de mão dada pela praia é quase um dever. Podemos gastar o tempo em comentários banais, sobre quem passa ou o que será o jantar desse dia. Mas também podemos ir à procura do que ficou por dizer, partilhar o que nos pesa ou o que nos continua a fazer sonhar. Esta liberdade que nos dás, todos os dias, de fazermos o que queremos e como queremos, é tão extraordinária. Dá-nos a dimensão  de outro Amor, do Teu amor por nós.

VOLTAR A CASA

Há quem volte cedo, quando o sol está a pino e a areia começa a escaldar. Há quem fique por lá todo o dia, resistente ao calor que queima, debaixo de sombras tão pequenas que precisam de se encostar uns aos outros, um pé de fora já dói. Abrem-se sacos e distribuem-se sandes e fruta e sumos. Joga-se às cartas, lêem-se livros e jornais. Há bebés a dormir debaixo de fraldas. Há quem esteja a chegar, quando outros partem, desejosos das janelas abertas dos carros, do fresco das suas casas. No regresso encontram bancas de fruta, onde estão mulheres com a pele marcada pelo trabalho e pelo sol. Do outro lado, toalhas e vestidos, pendurados numa corda, marcam o terreno de quem ali vende. Por vezes param a comprar o almoço. E quando finalmente chegam a casa, a rotina volta, sem surpresas. Os banhos rápidos, no chuveiro cá fora, enquanto o peixe estala no grelhador. As batatas cozidas, os pimentos comprados no outro lado da fronteira, a alface temperada. E todos falam, uns no meio dos outros, comentando o vizinho do lado, defendendo o passeio da tarde, criticando uns e elogiando outros. Quando as travessas ficam vazias, desaparecem como ratinhos a bordo de um navio. E ficam os mesmos de sempre. Umas vezes felizes, porque sim, outras a rabujar porque não há direito.

O mundo é tão grande e tão diferente. O sol escaldante lembra-me as gentes do deserto, que vive em tendas, abertas. Outros vivem em quartos sem janelas. Outros em casas imensas, cheias de tesouros. Outros em barracas sujas, no meio de ratos. Que mundo este, em que vivemos. Que esperas de nós, que temos tanto?

A comida é um bem escasso. Como a água. Precisamos de ensinar os mais novos a não desperdiçar a água do banho, a não deixar restos em travessas que chegaram abundantes. Precisamos de cuidar da terra onde vivemos. Como será a vida daquela mulher tão nova, que vejo todos os dias a vender fruta? Eu Te peço por ela. Tenho de lhe perguntar como se chama.

Ajuda-me a não rabujar. Ajuda-me àquele esquecimento das minhas vontades. Mas um esquecimento feliz. Porque sim. Porque por Ti.

 

 

Fonte: https://pontosj.pt/jesuitas

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