DESPORTIVISMO NA VIDA CRISTÃ

«Para ti, que és desportista, que boa razão a do Apóstolo: ‘Nescitis quod ii qui in stadio currunt omnes quidem currunt, sed unus accipit bravium? Sic currite ut comprehendatis’ (1 Cor 9, 24-25) Não sabeis que, dos que correm no estádio, embora todos corram, um só obtém o prémio? Correi de tal maneira que o ganheis.» (S. Josemaría Escrivá, Caminho, n. 318)

A vida cristã é um desporto sobrenatural

A palavra tradicional que traduz o esforço de um cristão para se parecer cada vez mais a Cristo é «ascese», que tem a sua origem na palavra grega que designa o esforço de um atleta para alcançar a vitória. Por isso não admira que muitos autores espirituais usem este paralelismo iniciado por S. Paulo.

No entanto, o próprio paralelismo pode induzir a um engano, que seria o de pensar que esse desporto estaria só reservado aos atletas de «alta competição», ficando o resto das pessoas reduzidas à função de participar como espectadores, com mais ou menos bandeirinhas, cachecóis ou pinturas na cara.

Por isso é interessante constatar que um dos autores espirituais que mais contribuiu na nossa época para recordar o «chamamento universal à santidade» refiro-me a S. Josemaría Escrivá também tenha usado abundantemente esse paralelismo, mas para nos dizer que todos estamos chamados a praticar, com espírito desportivo, esse esforço por sermos coerentes com a nossa fé cristã, não só em estádios monumentais e em ocasiões especiais, mas na nossa vida quotidiana. Vou tentar ilustrar isso com alguns textos seus:

«A luta ascética não é algo negativo nem, portanto, odioso, mas afirmação alegre. É um desporto. O bom desportista não luta para alcançar uma só vitória e à primeira tentativa. Prepara-se, treina-se durante muito tempo, com confiança e serenidade: tenta uma e outra vez e, mesmo que no princípio não triunfe, insiste tenazmente, até superar o obstáculo» (Forja, 169). «Dá muito bom resultado empreender as coisas sérias com espírito desportivo… Perdi várias jogadas? Bem, mas se perseverar no fim ganho» (Sulco, 169).

Este espírito desportivo é antes de mais um estado de espírito, de luta, não contra um adversário que se pretende derrotar, mas consigo próprio, um espírito de superação que se opõe à mediocridade sem ideais:

«Recupera o tempo que perdeste descansando sobre os louros da complacência em ti mesmo, ao julgares-te uma boa pessoa, como se fosse suficiente ir andando, sem roubar nem matar. Aperta o passo na piedade e no trabalho: fica-te ainda tanto por andar! (…)» (Sulco, 167).

Cair e levantar-se

Outra característica do espírito desportivo é a capacidade de perseverar apesar das aparentes derrotas, quedas e percalços da prova:

«No caminho da santificação pessoal, pode, às vezes, ter-se a impressão que, em vez de avançar, se retrocede; que, em vez de melhorar, se piora. Enquanto houver luta interior, esse pensamento pessimista é apenas uma ilusão, um engano que convém repelir. Persevera com tranquilidade: se lutas com tenacidade, progrides no teu caminho e santificas-te» (Forja, 223). «Neste torneio de amor não devem entristecer-nos as quedas, nem sequer as quedas graves, se recorremos a Deus no Sacramento da Penitência, com dor e com um bom propósito» (Cristo que passa, 75).

Neste desporto, só é derrotado aquele que se dá por vencido:

«Há uma única doença mortal, um único erro funesto: conformar-se com a derrota, não saber lutar com espírito de filhos de Deus. Se faltar esse esforço pessoal, a alma paralisa-se e jaz sozinha, incapaz de dar fruto. (…)» (Forja, 168).

E, como sempre, os grandes momentos preparam-se no dia-a-dia dos treinos, nas coisas pequenas de cada jornada:

«Oiçamos o Senhor, que nos diz: ‘quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco, também é injusto no muito’ (Lc 16, 10). Isto é a mesma coisa do que se nos recordasse: luta a cada instante nesses pormenores aparentemente pequenos, mas grandes aos meus olhos; vive com pontualidade o cumprimento do dever; sorri a quem precise, mesmo que tu tenhas a alma dorida; dedica, sem regateares, o tempo necessário à oração, acode a ajudar quem te procura; pratica a justiça, ampliando-a com a graça da caridade.

«São estas, e outras semelhantes, as moções que em cada dia sentiremos dentro de nós, como um aviso silencioso que nos leva a treinarmos neste desporto sobrenatural de nos vencermos a nós mesmos» (Cristo que passa, 77).

Mais Longe, mais Alto, mais Forte

Mas o desportista não se contenta em «sobreviver» às adversidades. A sua meta é superar-se continuamente, ideal que está sintetizado no lema Olímpico: «Mais longe, mais alto, mais forte»:

«Não podemos parar. O Senhor pede-nos uma luta cada vez mais rápida, cada vez mais profunda, cada vez mais ampla. Somos obrigados a superar-nos, porque nesta competição a única meta é a chegada à glória do céu. E se não chegássemos ao céu, nada teria valido a pena» (Cristo que passa, 77).

Durante o verão de 1972 o ano dos Jogos Olímpicos em Munich , S. Josemaría passou algumas semanas no norte da Itália, muito perto da fronteira suíça: aí pode seguir na televisão as Olimpíadas. Incomodava-o um pouco ver toda aquela espécie de culto ao corpo humano que é uma coisa nobre, grande, limpa… e aquele fogo sagrado… mas sabia ver também a lição que podia tirar daquelas competições. Numa tertúlia em que um professor lhe perguntou como poderia motivar mais os seus alunos, respondeu-lhe com palavras e gestos que ficaram registados em filme:

«Via como se aproximavam aqueles moços fortes, com a vara preparada para saltar (e as suas mãos simulavam agarrar a vara). Concentravam-se em silêncio até que, por fim!, dava a impressão de que se decidiam (com um gesto do corpo, insinuava o impulso da partida do atleta). Mas não: passara uma mosca por ali, e acabara-se a concentração. Têm mais recolhimento que muitos cristãos à hora de rezar! Outras vezes (agora imitava os especialistas em salto em altura), não paravam, queriam saltar, mas… não conseguiam. Então abaixavam a cabeça (e ele a abaixava, num gesto que arremedava a frustração do salto fracassado), iam de novo ao ponto de partida, relaxavam os músculos e punham-se outra vez nessa espécie de recolhimento fisiológico, que seria, ao mesmo tempo, psicológico. Depois, lançavam-se (novamente, o gesto que lembrava um vibrante começo de corrida) e, talvez na quarta ou quinta tentativa, saltavam. Tu deves dizer aos teus alunos – acrescentou, dirigindo-se ao professor que lhe havia falado – que na vida acontece isso. […] Queremos relacionar-nos com Deus, e […] para isso é muito bom fazer uma ginástica espiritual, que é muito semelhante pelo menos paralela à ginástica física» (in José Luís Soria, Mestre de bom humor, Ed. Quadrante, pp.108-109).

Assim, o desportista não se motiva com vagos sentimentos agradáveis, ou quando a vitória é fácil, sem esforço. Uma vez mais inspirando-se em S. Paulo, escrevia:

«Sentir no corpo e na alma o aguilhão do orgulho, da sensualidade, da inveja, da preguiça do desejo de subjugar os outros, não deveria ser uma descoberta. É um mal antigo, sistematicamente confirmado pela nossa experiência pessoal. É o ponto de partida e o ambiente habitual para ganhar a nossa corrida para a casa do Pai, neste desporto tão íntimo. Por isso ensina S. Paulo: ‘quanto a mim corro, não como à aventura; combato, não como quem açouta o ar; mas castigo o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que não suceda que tendo pregado aos outros, eu mesmo venha a ser réprobo’ (1 Cor 9, 26-27). 0 cristão não deve esperar, para começar ou sustentar esta contenda, por manifestações exteriores ou sentimentos favoráveis. A vida interior não é uma questão de sentimentos, mas de graça divina e de vontade, de amor» (Cristo que passa, 75).

Fé na ajuda da Graça de Deus

É sabido como os atletas agradecem o apoio do público. Nalguns casos, no meio dessa multidão, sentem o apoio muito especial de alguém a noiva, a mulher ou os filhos, os amigos que, mesmo quando não os podem ver, sabem que estão lá e isso dá-lhes mais força de vontade para vencer os obstáculos. O cristão sabe que Deus está a olhá-lo com amor e lhe está a dar a força da sua graça:

«Tive oportunidade de observar, em algumas ocasiões, como reluziam os olhos de um desportista, perante os obstáculos que tinha de saltar. Que vitória! Observai como domina as dificuldades! Assim nos contempla Deus, que ama a nossa luta: seremos sempre vencedores, porque nunca nos nega a omnipotência da sua graça. E não importa então que haja luta, porque Ele não nos abandona» (Amigos de Deus, 182).

Um espectador especial é o treinador. Quantas palestras «nos balneários» ou conversas durante os «estágios» infundiram força, confiança e lucidez para a hora da luta. É esse o papel da oração na vida do cristão:

«Nos momentos dedicados expressamente a esse colóquio com o Senhor, o coração expande-se, a vontade fortalece-se, a inteligência – ajudada pela graça – enche a realidade humana com a realidade sobrenatural. E, como fruto, sairão sempre propósitos claros, práticos, de melhorares a tua conduta, de tratares delicadamente, com caridade, todos os homens, de te empenhares a fundo com o empenho dos bons desportistas nesta luta de amor e de paz» (Cristo que passa, 8).

Outro espectador muito especial é, com frequência, a mãe do atleta que, no estádio ou em casa a ver na televisão, acompanha o «seu menino». Ele sabe que lhe deve, ainda antes do nascimento, a sua forma física e grande parte do seu carácter e, com frequência, conta com as suas orações. Também é assim com a nossa Mãe do Céu, se tivermos fé:

«Falta-nos fé. No dia em que vivamos esta virtude confiando em Deus e na sua Mãe , seremos valentes e leais. Deus, que é o Deus de sempre, fará milagres pelas nossas mãos.»

« Dá-me, ó Jesus, essa fé que de verdade desejo! Minha Mãe e Senhora minha, Maria Santíssima, faz com que eu creia!» (Forja, 235).

 

autor:

Jorge Margarido Correia

Fonte: Revista celebração Litúrgica

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