O clero da Diocese do Algarve participou na passada terça-feira numa ação de formação em psicoterapia familiar para que possa estar mais apto para a assistência espiritual que é chamado a prestar às famílias.
Na iniciativa, que teve lugar no Seminário de São José, em Faro, com a participação de bispo, sacerdotes e diáconos num total de 37 elementos, a psicóloga clínica e terapeuta familiar que orientou o encontro, desafiou ao estabelecimento de uma “rede de cooperação” com técnicos, de preferência católicos, que os possam ajudar na resolução das problemáticas familiares.
Margarida Cordo, que abordou o tema “acolhimento a famílias e casais – que contextos mais frequentes no mundo atual”, elucidou o clero para o desafio de ajudar as famílias atuais, muitas delas a viver segundas e terceiras uniões conjugais. “São famílias de uma densidade inter-relacional brutal, de uma complexidade imensa, frequentemente com níveis de conflitos manifestos significativos, mas com níveis de conflitos latentes muito mais significativos”, identificou.
Neste contexto, lembrou que se for detetada “patologia grave” em algum dos membros do casal ou da família “é fundamental que [o caso] seja reencaminhado para a ajuda técnica”. “Se as «feridas» de um dos dois membros do casal forem demasiado extensas também deve ser encaminhado para ajuda técnica e, claramente, para terapia familiar”, acrescentou, alertando que “o sacerdote não deve fazer intervenções de mudança no padrão de relações que ultrapassem ou toquem aspetos clínicos” e que é importante “identificar as fronteiras da intervenção de uns e de outros e a articulação possível para fazer o melhor” pelas famílias.
A psicoterapeuta, que trabalha em terapia familiar há mais de 20 anos e que abordou os limites dos papéis dos sacerdotes e dos técnicos nesta área e a articulação entre eles, realçou que clero e técnicos são “responsáveis por impregnar a vida das famílias de fé, esperança e caridade”, mas alertou ser preciso “cuidado com as expetativas”. “Não podemos prometer cura de relações. Podemos prometer uma ajuda que, por ventura, abre caminhos”, afirmou. ” O papel do sacerdote é ser um ausente presente. Não está com eles mas está para eles. Não faz por eles o caminho que devem trilhar, mas está lá para os ajudar a abrir mais perspetivas naquele caminho”, complementou.
Margarida Cordo disse ainda ser preciso “sensibilizar as pessoas para cuidarem do amor sem o vulgarizar” e “fundamental fazer um enquadramento sistémico de todos os problemas, eliminando a causalidade linear, os culpados e as vítimas”. “Temos de ajudar as pessoas a perceber que se é a família ou o casal que está a pedir ajuda, não estamos nem perante culpados, nem vítimas. Estamos perante uma rede de relações que tem um padrão que não funciona adequadamente”, advertiu, frisando que “toda a abordagem deve ser feita no entendimento do quadro relacional que é vivido pelas pessoas”.
Neste sentido, aconselhou a acabar com a lógica de culpados e vítimas. “Não estamos a falar de culpados, vítimas, raivas… Aqui é preciso termos muito cuidado porque as pessoas caminham no trilho que nós lhe oferecermos e quando pedem ajuda estão disponíveis para percorrer esse mesmo trilho”, alertou, considerando ser preciso levar a que todos se empenhem e responsabilizem pela “remodelação do padrão relacional que está estabelecido na família” em crise.
A psicóloga destacou ainda o sacerdote como “alguém que ajuda o casal a congregar os projetos de cada um e a conciliar os que forem apenas de um com o sentido de vida do agregado, se isto for conciliável”. “Atenção que uma coisa é ter projetos diferentes e outra coisa é ter projetos antagónicos”, alertou, lembrando que “um casal une-se, mas não se funde” e que é fundamental “perceber o projeto individual de cada um”.
Aquela técnica exortou o clero a “passar a ideia de que amar também é querer amar”, pois “as relações nem sempre estão esgotadas quando as pessoas julgam que estão”. “O que as pessoas fizeram foi deixar de investir nelas. Muitas vezes temos de ajudar as pessoas a encontrarem os recursos que têm e que, por ventura, estão mal geridos”, acrescentou, lembrando ser “fundamental não promover as incoerências”.
Margarida Cordo afirmou que “a sociedade das aparências é outra realidade que afeta brutalmente as famílias” e lamentou que se viva “para a forma e não para o conteúdo”, criticando um “conceito de felicidade” que disse existir e que, segundo a psicóloga, passa não pela felicidade do próprio, mas por levar os outros a achar que ele é feliz. ” Hoje em dia há um orgulho por parecer bem que não tem nada a ver com dignidade. Educa-se para o protagonismo e para as aparências. Promove-se o hedonismo e o narcisismo como forma de vida e educa-se para estes”, criticou.
Na “visão sistémica” que apresentou do “mundo das famílias”, destacou os momentos mais críticos da vida familiar, bem como os “falsos mitos”. A psicoterapeuta frisou ainda que “o enriquecimento da conjugalidade quando existe parentalidade é fundamental para a qualidade da relação que se estabelece com os filhos”. “Filhos que crescem em famílias cujos pais não são uma boa representação de uma união entre duas pessoas, são normalmente filhos que crescem sem esperança de que a família vale a pena”, alertou.
Margarida Cordo, que se deteve mesmo na explanação de técnicas e metodologias aplicadas na terapia familiar, referiu-se ainda à necessidade de “incutir nas famílias uma ação que pode ser evangelizadora e ao mesmo tempo discreta”.
O bispo do Algarve considerou que aquele encontro de formação ajudará a diocese algarvia a dar uma “resposta pastoral” que disse ser “urgente” para perceber “como criar espaços para a escuta e para o acolhimento, de maneira que as pessoas se sintam integradas e não excluídas daquilo que é a realidade eclesial”. “Queremos organizar-nos neste sentido”, assegurou.
Fonte: www.folhadodomingo.pt