As Festas Populares na Igreja

1 – Junho é um mês especialmente devotado às festas dos santos populares: Santo António, São João e São Pedro. Apesar da longeva tradição atribuída a cada um destes folguedos, cada um deles se apresenta com fundamentos e cronologias muito distintas. Estão, no entanto, irmanados indiscutivelmente na sua forma e expressividade. Junho é o mês do solstício de verão, o período do calendário em que a Europa celebra o seu dia mais longo, mesmo antes do Cristianismo absorver esse costume. Tempo favorável para perduradas vigílias, privilegiava-se o convívio, a festa e a exultação. Não admira, pois, que os santos mais populares do devocionário cristão vissem a sua celebração litúrgica coincidir com este especial período do calendário anual.

 

2 – A mais ancestral festividade é a de São João Baptista, e do seu prodigioso nascimento, santo fundamental na onomástica evangélica e, por conseguinte, na Igreja nascente. Seguiu-se São Pedro, o primeiro Papa e referência fundamental de autoridade e evangelização para os primeiros cristãos. Por último apareceu o franciscano português Santo António, que goza de uma singular popularidade advinda da sua excecional dotação taumaturga. Cada um destes oragos está devidamente impresso nas dinâmicas comunitárias das localidades portuguesas. A sua relevância pode ser inferida através dos feriados municipais, que refletem a precedência de cada um dos cultos. São João é o primeiro com 34 feriados municipais, seguindo-se São Pedro com 17 e, por fim, Santo António com 14 ocorrências.

3 – As festas populares realizadas no decorrer do mês de junho detêm características que as diferenciam das demais festividades do calendário cristão. A exteriorização excessiva concretizada em manifestações de gáudio contínuo, e sua expressividade comunitária, é o mais significativo traço distintivo, porém a sua extensão vespertina encontra fundamento num imaginário que ainda hoje é a base de outras manifestações da religiosidade popular, inclusive no nosso país. Por isso mesmo, esta natureza convivial não deixa de se constituir como o principal momento de corporização das designadas festividades populares, dado que corresponde ao tempo dos afetos e da comunidade, desprovido de qualquer pretensão turística, económica ou cultural preliminar.

4 – A festa é sempre um acontecimento que, para se afirmar com tal estatuto, necessita de rasgar com o conceito de normalidade imposto pelo quotidiano. A exteriorização é, por isso mesmo, uma das caraterísticas fundamentais da festa. Não há festa sem que os moldes habituais sejam transgredidos, sem que os padrões de convivência comunitária sejam rasgados ou sem que o sistema geral de comunicações extravase para um nível excessivo Na opinião de Mircea Eliade, a festa significa, na sua origem, constitui-se como uma espécie de intervalo no tempo histórico, para permitir que os humanos possam participar no tempo divino[1]. Esta origem eminentemente religiosa das festas, não deixa de rasgar com o habitual paradoxo entre o profano e religioso, tantas vezes exposto nas teorias construídas sobre as festas. Como sabemos a questão da religiosidade não é consensual, muito menos o seu aprofundamento seja no âmbito eclesial ou num contexto académico. Afinal, a festa é um acontecimento profano ou religioso?

5 – Recuemos até ao Concílio de Trento, momento histórico fundamental para a evolução de práticas e manifestações da religiosidade popular, mormente no âmbito da devoção aos santos. Obedecendo ao especial clima de religiosidade fomentado pela reforma tridentina, foi impressa uma nova dinâmica às práticas promovidas pelas comunidades cristãs, nomeadamente ao nível das manifestações públicas de fé e devoção. A valorização da dimensão espiritual e da religiosidade na experiência do cristão acabou por funcionar como fenómeno propulsor de cerimoniais públicos – onde se enquadrou, por exemplo, as procissões – contribuindo para o surgimento e crescimento dos folguedos que já integravam o calendário cristão. Emparelhado aos atos eminentemente religiosos surgiriam os demais momentos da confraternização comunitária. Só mais tarde surgiria a tensão entre o profano e o sagrado.

6 – Ainda hoje as festas populares são a expressão mais evidente desse antagonismo, especialmente as que são celebradas durante o mês de junho, nas quais o que denominamos de profano se mistura com aquilo que entendemos por sagrado. Perante estas dúvidas e amálgamas, como deve a Igreja intervir? Limitar as festividades apenas às novenas, eucaristias e procissões, buscando a exclusão dos elementos mais gentios? Ou procurando uma renovada leitura da realidade, na qual a perceção plena do ser humano se enquadre numa antropologia mais lúcida? A este propósito, em 2004, a Arquidiocese de Braga publicou um conjunto de orientações pastorais sobre festas religiosas[2]. Considerando que as festas “fazem parte da existência humana e constituem uma das formas de viver e manifestar publicamente a fé”, apelava-se a uma crescente “dignificação” das festas, evitando “divisões na comunidade” e “esbanjamento de dinheiro”, entre outras problemáticas advindas precisamente dessa fronteira delineada entre profano e sagrado, pagão e religioso.

7 – As festas populares surgiram e desenvolveram-se em torno de uma determinada evocação de cariz hagiográfico. Talvez até aos dias de hoje se constituam como momento primordial de expansão de confraternizações e afetos tão necessários para o ser humano, cuja oportunidade eram os preceitos concedidos pelos oragos. Ao santo se associava, pois, o júbilo, a harmonia com a comunidade e, até, os amores. Poderá haver maiores evidências de vida cristã? Neste tempo em que a pandemia nos obrigou a um demorado intervalo no quotidiano, que se estendeu também às tão aguardadas festas populares, seria certamente oportuna uma alargada reflexão eclesial sobre as festas populares e o papel da Igreja na realização das mesmas.

 

 

Fonte: https://agencia.ecclesia.pt/

Autor: Rui Ferreira, Arquidiocese de Braga

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