Vivemos mergulhados num ambiente de crise que vem de há já algum tempo. Ultimamente, dadas as repercussões económicas com que afecta a vida das pessoas, tem-se limitado às dificuldades materiais que afligem a maioria da população.
Mesmo os que reconhecem que a vertente económica é apenas parte e sintoma da crise que é mais global, também se limitam a actuar, e bem, no domínio dos bens materiais. Em conclusão, podemos correr o risco de deixarmos de parte a verdadeira análise dos fundamentos da verdadeira crise da nossa sociedade e a responsabilidade que cabe a todos, sem dúvida, mas com maior relevo para os que têm cargos públicos ou os que organizadamente interferem na vida cultural e social.
A questão prioritária que se deve colocar é a visão do ser humano enquanto pessoa de relação. Bento XVI, na Encíclica «Caridade na Verdade» (CV), após referir que a Igreja no seu agir tende a promover o homem na sua integralidade, sublinha que «o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões» (CV, 11). E, corajosamente insiste, dizendo que «sem a perspectiva duma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro. Fechado dentro da história, está sujeito ao risco de reduzir-se a simples incremento do ter»(CV, 11). «O homem, conclui o Santo Padre, não se desenvolve apenas com as suas próprias forças, nem o desenvolvimento é algo que se lhe possa dar simplesmente de fora» (CV,11).
No mundo em que o progresso se voltou contra o homem, no qual este é considerado como coisa e não como pessoa, importa sublinhar a advertência que o Santo Padre dirige sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, dizendo que «o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: “com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social” (CV,25).
Reconhecemos que a par com o agravar da crise económica sectores da sociedade foram provocando o desmoronar dos valores constitutivos da cultura e da civilização. O ser humano, nomeadamente no Ocidente, vai perdendo as suas referências ao seu passado cultural, à sua inserção civilizacional, aos outros enquanto concidadãos e a Deus enquanto Criador e Horizonte para onde caminha. Insiste-se no individualismo que gera o isolamento total da pessoa.
Neste sentido, refere Bento XVI, no citado documento, o seguinte: «o risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interacção ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano» (CV, 9). Para o Santo Padre, «só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora» (CV, 9). Por isso, o autêntico desenvolvimento, que conta com a partilha de bens e recursos, «não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades» (CV, 9).
Assistimos, em nome da liberdade individual e do progresso, à destruição da realidade familiar e ao ataque mais brutal à dignidade humana através do aborto, da eutanásia e outras situações de degradação da vida humana. A vida e a família fazem parte dos valores fundamentais constitutivos da sociedade nos quais assenta a pessoa na multiplicidade das suas relações e onde absorve o projecto de sentido último para a sua existência. Com as fracturas criadas, deixou-se o homem sem referências.
Os Bispos Portugueses alertavam para esta realidade, ao afirmarem que «na nossa sociedade sente-se cada vez mais que as regras inspiradoras dos comportamentos, as próprias leis e o sentido global da vida individual e comunitária, deixaram de se inspirar em padrões éticos e de valores, num quadro cultural que defina um projecto e um ideal, na linha da nossa tradição cultural, e decorrem ao sabor de critérios imediatistas e pragmáticos, onde não se escondem intenções de alguns grupos de provocar rupturas fracturantes, em relação à tradicional cultura portuguesa, ou mesmo em relação à influência da doutrina da Igreja na sociedade».
(Nota pastoral «Crise de sociedade, crise de civilização, nº 2).
Recuperar da crise económica de modo sustentável não se consegue sem reconstruir, igualmente, a pessoa e a sociedade através de uma valorização ética e sem restabelecer as relações fundamentais e transcendentes que engrandecem e dignificam a pessoa humana. Dar resposta às exigências morais mais profundas da pessoa, afirma o Santo Padre, tem também importantes e benéficas consequências no plano económico. De facto, sublinha, «a economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa» (CV, 45).
Isto só se consegue quando o desenvolvimento for encarado como «vocação», no dizer de Bento XVI. Refere, então, que «dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último» (CV,16). Conclui, sublinhando que «não há, portanto, verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana»(CV, 16).
Tal como afirma Bento XVI, Deus é o garante do verdadeiro desenvolvimento do homem, já que, tendo-o criado à sua imagem, fundamenta de igual forma a sua dignidade transcendente e alimenta o seu anseio constitutivo de «ser mais» (cfr. CV, 29). Por isso, é preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial (cfr. CV, 42).
Fonte: Jornal Voz Portucalense
Autor : D. João Lavrador, Bispo Auxiliar do Porto