A nossa humanidade a falar

1 – A Igreja insiste todos os anos num tempo chamado Advento, que se propõe ajudar os cristãos a preparar a celebração do nascimento de Jesus Cristo, ou seja, o Natal. Com este especial tempo começamos oficialmente uma preparação interior, mas que se revela de forma clarividente nos sinais exteriores. Todo o mundo se transfigura, desde as ruas às nossas casas. Luzes, compras, papel de embrulho, músicas melodiosas, azevinho, pinheiros, decorações multicolores… muitas vezes já em Outubro. Um autêntico exagero de manifestações. Mas não faltará algo?

2 – O Natal é a festa mais celebrada em todo o mundo! Oportunidade para as famílias se reunirem, é o momento propício para os amigos se reencontrarem. Tempo especial de nos lembrarmos das pessoas anónimas que, ao nosso lado, passam privações. Por tudo isto, o Natal é o tempo preferencial da construção da humanidade. O Natal chega todos os anos como um tempo diferente, quiçá exagerado, mas é tão nosso! Pese os exageros e até oportunismos, é um tempo que nos aproxima inevitavelmente uns dos outros. E que melhor motivo de unidade que as nossas tradições natalícias! Os presépios movimentados ou vivos, as iguarias que revestem as nossas mesas, os cânticos conservados no fulgor da lareira, a inevitável tendência para olharmos por aqueles que a vida tornou mais frágeis, tudo isto marca a nossa forma de ser humanos. Dir-se-ia que está deturpado pelo consumismo abrupto e pela necessidade de oferecer presentes. Até poderíamos recordar que tem estado cada vez mais esquecido o motivo fundamental desta festa: o nascimento de Jesus. Porém, apesar de tudo isto, o Natal continua a ser o momento em que nos confrontamos com a nossa mais profunda verdade.

3 – Mais do que qualquer predisposição religiosa, o Natal recorda-nos que estamos para sempre ligados uns aos outros pelo simples motivo de sermos humanos. Como afirma o grande literato inglês Charles Dickens, “o Natal é um tempo de benevolência, perdão, generosidade e alegria; a única época do ano em que homens e mulheres parecem abrir livremente os seus corações”. É isso que nos faz doer o coração quando alguém à nossa frente sofre ou passa necessidade. É isso que nos ensina a sermos generosos, oferecendo o nosso tempo e energia gratuitamente, apenas pelo consolo de ver outra pessoa mais feliz. Por isso mesmo, este é um tempo que nos não permite ser indiferentes às imagens que corroem o nosso mais íntimo lugar, e que habitualmente vemos na televisão, jornais ou internet. É isso que nos conduz ao perdão, principalmente daqueles que fazem parte da nossa vida e estão distantes, em particular nesta época de preparação para o Natal. É isso mesmo! É a nossa humanidade a falar!

4 – O Natal pode parecer uma mera comemoração se não soubermos decifrar o seu significado mais profundo. Não podemos ficar indiferentes à intensidade do grito de Isaías: “Oh, se rasgásseis os céus e descêsseis!”(Is 63, 19). Sim, Isaías, Ele desceu e está entre nós! Veio e ficou. Aquele que é imensamente grande, infinitamente distante da nossa pequenez, decidiu descer ao encontro da ‘nossa’ fraqueza. O Rei, monarca de todos os poderes, abandonou o seu palácio e desceu à humilde habitação do seu povo. O rico fez-se pobre; o são, doente e o poderoso frágil. O Natal é um grito no meio do deserto, um gesto sublime cuja irreverência nos sufoca. Deus veio, fez-se um de nós, arriscou aproximar-se.

5 – Advento significa “vinda”, a descida tão esperada pelo povo do Senhor. O Senhor dos tempos não ficou indiferente perante a súplica da humanidade. O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; aqueles que caminhavam convencidos de que a sua vida apenas se dirigia para o termo, encontraram a esperança; aqueles que viviam no desespero da dor já não estão sós. Os mais céticos não podem deixar de se divorciar da dúvida. Deus fez-se homem, estendendo a mão àqueles que havia escolhido.

6 – O Natal é isto mesmo: o lugar onde todos nos encontramos, sem distinções, carregando a espontaneidade da humanidade que nos irmana. Escutemos, pois, a voz profunda que vem da pequenez da gruta. Sejamos humanos. Sejamos aquilo que somos. Na fragilidade do Menino que está a vir encontra-se a verdade. Não há mais segredos por revelar. Por que continuamos à procura de respostas quando o que profundamente desejamos está tão claro e evidente? Reconheçamos a infinidade da nossa existência. Abracemos os que estão distantes. Levantemos os caídos. Procuremos o perdão. Partilhemos o que somos e temos. Porque Aquele que tudo era, tudo rejeitou para verdadeiramente ser. Sejamos, pois, autenticamente humanos. E tudo o resto virá a seguir.

 

Fonte: https://agencia.ecclesia.pt

Autor: Rui Ferreira, Arquidiocese de Braga

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