A missão em tempo de incerteza

O papel das Missões em países de minoria católica agravou-se ultimamente com os movimentos anticristãos, em boa parte devidos à identificação popular do Cristianismo com o imperialismo ocidental desde os «Descobrimentos» até ao século XX. Hoje, aliás, o próprio «Ocidente», renegando o seu passado cristão, perdeu todo o desejo de apoiar as Missões, excepto, ocasionalmente, no pendor assistencial. Ainda bem, pelo esvaziamento do seu malfadado cunho político; e uma pena, pela nossa descristianização. Mas estamos agora a braços com outro problema: a confusão reinante entre os próprios fiéis, mesmo piedosos, que, em tempos de profusa e variegada «desinformação», entram em dúvida quanto ao que devem crer e ser fiéis.

Se desde o princípio e ao longo da História da Igreja se levantaram heresias, no nosso tempo foram-se multiplicando as incertezas. E a incerteza é mais insidiosa do que elas, porque ataca a fé na sua raiz: põe em causa a própria possibilidade de crer firmemente na Palavra de Deus. Afinal, o que diz ao certo a Sagrada Escritura? Se até os estudiosos da Bíblia diferem a cada passo da leitura e exegese tradicionais, em que ficamos? Inclusive aqueles que tomassem conhecimento das últimas orientações oficiais, de 1993, dirigidas aos exegetas sobre o método histórico-crítico, ficariam com a impressão de que a Sagrada Escritura pode ser analisada de tantos ângulos e por meio de tantas disciplinas, da retórica à psicanálise, da semiótica à abordagem feminina, que seria impossível, afinal, esperar daí quaisquer conclusões seguras.

Talvez pese nesta multiplicidade de perspectivas de investigação um triplo anseio, ecuménico, apologético e científico: descobrir mais laços de união com os cristãos não católicos, contestar novos argumentos contra a nossa fé, e equipar-nos o melhor possível na investigação bíblica. Três bons desejos, mas facilmente escorregadios para os seus contrários: perder a noção do que distingue a fé católica, focar a investigação sobretudo nas divergências, e discutir critérios, em vez de aprofundar verdades. Não foi outra, certamente, a preocupação que levou Bento XVI a publicar o seu «Jesus de Nazaré», mostrando que o caminho histórico-crítico é apto a confirmar a perene doutrina da Igreja.

Mas que fazer com quem não está familiarizado com as modernas problemáticas bíblicas? Convirá recordar-lhes que Tradição e Magistério são anteriores, contemporâneos e posteriores, ao Novo Testamento; que os Evangelhos, as Epístolas e o Apocalipse nos revelam e procedem justamente da existência anterior e original do depósito doutrinal, moral e sacramental da Igreja, e da sua própria estrutura hierárquica. E, inclusivamente, já contam com um profundo desenvolvimento teológico da fé, com a solução de muitos problemas doutrinais e o doloroso confronto com as mais diversas heresias.

Convirá ainda recordar-lhes que a doutrina perene da Igreja não foi fruto de estudos e análises dos peritos – que Deus abençoe e a quem tanto devemos –, mas da Revelação de Cristo e da assistência do Espírito Santo aos Apóstolos e seus sucessores. E que essas mesmas fé e moral praticadas na Igreja, foram desenvolvidas até em escolas predominantemente alegóricas, não literais, que, aliás, nenhuma é, pois nenhuma pode prescindir do sentido alegórico de inúmeras passagens da Bíblia. A fé e a moral cristãs constituem uma unidade perene para todas as épocas, civilizações e culturas. Demos graças aos exegetas que fortaleceram a doutrina perene da Igreja com os seus estudos, e compreendamos os não católicos, que partem de «tradições» posteriores àquela Tradição que nos garante o próprio valor da Sagrada Escritura e nos revela o seu autêntico sentido.

Com todo o respeito para com os outros, cristãos e não-cristãos, podemos e devemos manter-nos «fortes in fide» (1 Pedr 5, 9), sem a qual não há salvação. Nem missão.

 

Fonte: Revista Celebração Litúrgica |edição nº 6| Tempo Comum | outubro / novembro de 2020

 

Autor: Hugo de Azevedo

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