Causam uma certa surpresa alguns pormenores pouco habituais, presentes neste trecho. Jesus não cura o doente, como costumava fazer, com a simples palavra, mas leva-o para um lugar à parte, longe da multidão, mete-lhe os dedos nas orelhas, cota-lhe a língua com saliva, ergue os olhos ao céu, emite um gemido, pronuncia uma palavra estranha e por fim, precisamente depois de lhe ter libertado a língua, impõe-lhe o silêncio. O seu comportamento aproxima-se muito do dos magos.
Não deve causar surpresa a singularidade desta cena, porque os terapeutas da antiguidade acompanhavam habitualmente as suas ações curativas com gestos misteriosos. Procuravam criar uma atmosfera arcana, mantinham secretas as suas práticas exorcísticas e as suas receitas, recorriam à imposição das mãos e proferiam fórmulas esotéricas. Jesus adequa-se à mentalidade da gente do seu tempo, faz os gestos habituais dos curandeiros, mas como veremos, dá a estes gestos um significado novo.
Consideremos antes de mais o lugar onde se passa o episódio. Estamos na Decápole, a região onde Jesus expulsou de um possesso uma legião de demónios que depois entraram nos porcos e se precipitaram no mar. estamos, portanto, numa terra pagã e esta colocação geográfica, posta propositadamente em relevo pelo evangelista, tem um significado teológico inegável.
O doente a curar é um surdo-mudo, ou melhor, um surdo que mal podia falar, que se exprime de forma desarticulada e incompreensível. O termo grego moghilálos, com que o evangelista define a enfermidade, é muito raro. Em toda a Bíblia, aparece apenas no nosso relato e no trecho de Isaías que nos é proposto na primeira leitura. É evidente que, ao utiliza-lo, Marcos pretende referir-se à profecia e proclamar o seu cumprimento.
No Evangelho de Marcos o surdo-balbuciente é a imagem de quem nunca teve oportunidade de encontrar Cristo e escutar o seu Evangelho; indica também quem, propositadamente, fecha os próprios ouvidos e ão permite que a palavra de salvação penetre no seu coração.
Quem sofre de «surdez espiritual» e não adere à fé não pode igualmente celebrar a salvação porque não tem experiência do que isso seja: «Acreditar de coração leva a obter a justiça, e confessar com a boca leva a obter a salvação».
Curando o surdo-mudo, Jesus proclama o início de um novo diálogo entre o céu e a terra. A todos, judeus e pagãos, são abertos os ouvidos e o coração; todos podem ouvir o Evangelho, acolhê-lo na fé e anunciá-lo aos irmãos.
A ação curativa de Jesus marca também o início de relações novas entre os povos, as religiões e as culturas; é o sinal do encontro, do diálogo, da compreensão. É surdo e mundo quem não se confronta, quem é incapaz de dialogar com as outras pessoas, quem fica fechado no próprio mundo, certo de possuir já toda a verdade e nada mais ter a aprender.
A palavra de Cristo abre os ouvidos e liberta a língua também nas nossas famílias, nas comunidades cristãs, nos ambientes sociais, lugares onde muitas vezes, mais do que comunicar, nos agredimos, devido à incapacidade de ouvir as razões e as necessidades do outro.