Se consideramos o trecho do Evangelho apenas como a crónica de um facto redigida por uma testemunha ocular, não podemos deixar de notar algumas dificuldades. Admira por exemplo o facto de que, depois de tantas manifestações do Ressuscitado, os discípulos ainda não o reconheçam. É já a terceira vez que o encontram, e, no entanto, temos a sensação clara de que nunca o tinham visto antes. Depois, não se entende bem por que motivo ficam tão admirados perante a pesca milagrosa; Lucas diz que já tinham assistido a um episódio análogo no dia em que Jesus os tinha convidado a segui-lo para se tornarem pescadores de homens. E depois, por que é que Pedro e os outros apóstolos estão na Galileia e retomam a sua vida normal de pescadores? Depois da Páscoa, não se dedicam imediatamente e completamente ao anúncio do Evangelho?
Estas dificuldades são preciosas porque nos fazem suspeitar do género literário do texto: não estamos perante uma página de crónica, mas um trecho de teologia e a linguagem utilizada é bíblica, não jornalística. É assim difícil estabelecer o que terá realmente acontecido. O evangelista quer certamente dizer que os apóstolos fizeram uma experiência do Ressuscitado, mas quer sobretudo dar catequeses aos cristãos das suas comunidades.
No domingo passado contou-nos duas manifestações do Senhor: uma acontecia no dia de Páscoa, na ausência de Tomé, e a outra, passados oito dias, com Tomé presente. Esta insistência no ritmo «semanal» – dizíamos – era o modo com o qual João queria que os cristãos tomassem consciência de que, sempre que se reuniam, no dia do Senhor, para celebrar a Eucaristia, o Ressuscitado estava no meio deles.
Ao contrário do Evangelho da semana passada, o de hoje não coloca a aparição de Jesus ao domingo, mas num dia ferial, enquanto os discípulos estão ocupados com o seu trabalho. Retomamos então a vida de todos os dias. O que fazem os discípulos de Cristo ao longo da semana, qual é a missão que lhes está confiada e como a realizam? A estas perguntas o evangelista responde contando um episódio carregado de simbolismo que agora procuramos descodificar.
Comecemos pelos ocupantes do barco. São sete. Este número indica a perfeição, algo de completo. Pedro e os outros seis representam a totalidade dos discípulos que constituem toda a comunidade cristã. O simbolismo poderia ir mais além até ver, na identidade destes discípulos, uma imagem dos vários tipos de cristãos que, não obstante os seus limites e as suas faltas, têm sempre direito de cidadania na Igreja: aqueles que têm dificuldade em acreditar (Tomé), aqueles que são um pouco fanáticos (os dois filhos de Zebedeu) que queriam invocar o fogo do céu contra os opositores; aqueles que renegam o Mestre (Pedro), aqueles aqueles ligados às tradições do passado, mas honestos e abertos aos sinais dos tempos (Natanael), e também os cristãos anónimos que ninguém conhece (os dois discípulos sem nome).
O mar, notámo-lo muitas vezes, era para os Israelitas, o símbolo de todas as forças inimigas do homem.
Se o ser submerso pela água significa ficar à mercê do mar, pescar significa então retirar desta condição de «não vida», libertar das forças do mal que mantêm em situações de morte. Pensemos em todas as escravidões que nos impedem de viver com alegria, de sorrir: a avidez do dinheiro, os rancores, as paixões desregradas, a droga, a pornografia, a ânsia, a pressa, os remorsos, o medo….
Agora é claro o significado das palavras de Jesus quando disse aos discípulos: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
Aqui estão eles, de facto, ao trabalho, Pedro voltou à sua profissão, a sua é uma pesca material, mas – na linguagem teológica do evangelho – esta indica a missão apostólica da Igreja empenhada na libertação do homem. No Evangelho de Mateus o reino dos céus é comparado a uma rede lançada ao mar que recolhe todo o tipo de peixe e que, quando está cheia, é arrastada para a margem.
O Senhor não está no barco – é verdade – está na margem, já chegou à terra firme, ou seja, à condição definitiva dos ressuscitados. Para esta terra tendem e chegarão também os discípulos.
Finalmente vemos romper a manhã, e com o novo dia chega também a luz, aquela luz verdadeira que «ilumina todo o homem» «que nas alturas nos visita como o sol nascente». É Jesus; mas só com os olhos da fé é possível vê-lo e reconhecê-lo, porque é o Ressuscitado.
A sua voz nítida e bem perceptível, a sua palavra chega desde a margem e conduz a atividade dos discípulos.
E logo qe estes confiam, eis o milagre: contra todas as lógicas humanas, contra todas as expectativas razoáveis obtêm um resultado surpreendente.
João quer que os cristãos das suas comunidades cheguem à compreensão de que Jesus, mesmo estando na «margem» isto é, na glória do Pai, está sempre a seu lado, todos os dias e continua a fazer ouvir a sua voz, chama, fala, indica o que devem fazer.
