1º Domingo da Quarema – Ano A – AS TENTAÇÕES DE JESUS E DOS CRISTÃOS

As comunidades cristãs iniciam a sua caminhada quaresmal atentas aos apelos que lhes chegam da realidade. Celebramos a memória d’Aquele que venceu a tentação da riqueza, prestígio e poder, e Se tornou pão de vida para que todos possam viver. A Sua obediência ao Pai até ao fim trouxe-nos a justificação. Na celebração eucarística Jesus é a árvore da vida que o Pai plantou no centro da nossa existência. Com Ele nascemos para uma vida nova, baseada na partilha e fraternidade.

I Leitura (Gn 2, 7-9; 3,1-7) Quem é o ser humano?

Temos diante dos olhos o segundo relato da criação, surgido no século X a.C., quando Salomão reinava sobre Israel. Trata-se de uma reflexão sapiencial sobre o ser humano. Quem escreveu este texto não estava preocupado em mostrar factos concretos, e sim em ajudar a refletir sobre o projeto de Deus a respeito do ser humano e sobre a possibilidade de perversão desse mesmo projeto. De facto, Gn 2, 8-17 descreve, sob a imagem de um jardim, a vida paradisíaca que Deus planeou para nós. Trata-se de imagem muito apreciada pelos que viviam no deserto: o eu sonho era morar num pomar onde não faltasse água, com frutos de toda a espécie. No centro desse pomar está a árvore da vida, síntese de tudo o que o ser humano possa desejar. Deus, portanto, põe no centro da criação aquilo que as pessoas mais anseiam, isto é, a própria vida. O ser humano pode usufruir dos bens que Deus destinou à vida. Junto à árvore da vida está a árvore do conhecimento do bem e do mal, isto é, a possibilidade de o ser humano se tornar, pela sua auto-sufiência e ganância, o último critério na decisão do que é bom ou mau para si e para os outros.

O jogo da serpente, símbolo da auto-sufiência e da idolatria, é fazer com que as pessoas, apropriando-se da árvore do conhecimento do bem e do mal, se tornem como Deus, conhecedoras do bem e do mal. Quando nos colocamos no lugar de Deus roubamos uma prerrogativa que pertence unicamente ao Criador e tornamo-nos idólatras, pois prestamos culto a nós mesmos e à nossa ganância. A ganância é descrita no cap. 3 sob a forma de comer. Esse verbo, que aí aparece várias vezes, outra coisa não é senão o desejo de possuir tudo e todos.

Que acontece quando as pessoas dão livre curso à ganância, ao desejo de posse e à auto-suficiência? Deparam-se com a morte. De facto, aculpa do ser humano descrita no cap. 3 adquire contornos definitivos no cap. 4, onde Caim se apodera da vida do irmão indefeso, matando-o. Essa é a nudez do ser humano: perceber que, quando abrimos as portas à ganância, não nos resta outra coisa senão defender-nos, pois as pessoas tornam-se, mutuamente, um perigo que devora: «Abriram-se então os olhos aos dois, e eles compreenderam que estavam despidos. Entreteceram, por isso, folhas de figueira e fizeram cintas para si mesmos».

II Leitura (Rom 5,12-19): Em Cristo passamos da morte à vida

Paulo apresenta duas personagens das quais dependem dois modos de vida contrastantes entre si: Adão e Cristo. O primeiro, desobediente, introduziu no mundo o pecado. Solidário com ele, todos pecaram e todos estão sob o regime da morte. O segundo, obediente, trouxe à humanidade a graça e o dom, de onde nasce a vida para todos. O interesse de Paulo não é tanto mostrar o contraste entre Adão e Cristo, quanto reforçar a ideia de que, pelo batismo, estamos vivendo tempo e regimes novos, pois em Cristo a humanidade renasceu para a vida. O tempo da graça é infinitamente superior ao regime da escravidão e da morte, pois «O dom gratuito não é como a falta. Se pela falta de um só, a morte reinou por meio de esse único homem, com muito mais razão aqueles que recebem com abundância a graça e o dom da justiça reinarão na vida, por meio de um só, Jesus Cristo».

Cada um de nós traz Adão na sua carne. Ele é nosso pai, irmão e filho ao mesmo tempo, pois nós também nos deixámos submeter pela auto-sufiência e ganância (I Leitura). Contudo, o batismo, que é participação na morte e ressurreição de Jesus, fez de nós gente nova. Isso não é mérito nosso, mas sim fruto da solidariedade de Jesus que, com a Sua morte, nos justificou, fazendo-nos passar da morte à vida.

Evangelho (Mt 4,1-11): Como realizar a justiça do Reino?

Para o evangelista Mateus, Jesus é o Mestre da Justiça. As Suas primeiras palavras neste evangelho traça-lhe o programa: «Devemos cumprir toda a justiça». Porém, como realizar a justiça do Reino? É tentado esclarecer essa pergunta que Mateus apresenta, logo a seguir, as tentações de Jesus. Elas indicam os caminhos pelos quais a justiça do Reino não vem até nós.

As tentações de Jesus acontecem no deserto, onde Ele é conduzido pelo Espírito. O deserto lembra o tempo de gestação do projeto de Deus para o povo do Antigo Testamento. Foi lá que forjaram, no meio de duras penas, um projeto de sociedade alternativa, onde todos pudessem usufruir da vida e da liberdade, sem traços nem sinais da opressão vivida no Egipto. Mateus recorda que Jesus foi tentado durante quarenta dias e quarenta noites. Esse número é simbólico. Lembra o período em que Moisés ficou na montanha, sem comer nem beber, a fim de escrever, na intimidade com Deus, o contrato da aliança para a nova sociedade. Lembra também o tempo que Elias permaneceu no monte Horeb, do qual desceu depois para transformar completamente a sociedade. Lembra, ainda, os quarenta anos de Israel no deserto, com as suas tentações de voltar ao Egipto, mesmo que fosse para viver como escravo, desde que de barriga cheia. Jesus conhecia as tentações e descaminhos do Seu povo. Por isso propõe novos caminhos para realizar a justiça do Reino. Quais esses caminhos?

  1. Primeira tentação: realizar a justiça do Reino mediante a abundância

O diabo é aquele que tem um projeto capaz de perverter o projeto de Deus e de Jesus. Pode ser uma intuição, um projeto, um tipo de sociedade, um partido político, etc. a proposta que ele faz é que Jesus realize a justiça do Reino mediante um passe de mágica, utilizando Deus em benefício próprio: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães!». Ele quer um Deus que seja garantia de prosperidade, um deus de fachada.

Jesus recusa-Se a ser o messias da abundância porque o projeto de Deus vai além de promessas eleitoralistas: «Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus». O texto do Deuteronómio citado por Jesus fala do tempo em que o povo vivia no deserto e se contentava em viver assim desde que tivesse pão para comer. A palavra de Javé, porém, tem objetivos mais amplos: conduzir todo o povo à plena posse da vida e liberdade. A palavra que sai da boca de Deus recorda também o início da criação: ela sai da boca de Deus e a harmonia da criação vai acontecendo à medida que Ele fala, transformando a desordem em vida.

  1. Segunda tentação: realizar a justiça do Reino mediante o prestígio

O diabo tenta Jesus para que abuse do poder de Deus a fim de Se livrar da morte. E desta vez utiliza um texto da Bíblia (Sl 91, 11-12). Jesus é convidado a precipitar-Se do ponto mais alto do Templo de Jerusalém, para demonstrar que Deus está do lado d’Ele e que será capaz de libertá-l’O da morte.

Jesus recusa-Se a ser o messias do prestígio. Recusa-Se, sobretudo, a escapar da morte, pois o projeto de Deus, que é realizar a justiça do Reino, passa pela morte do Mestre da Justiça: «Não tentarás o Senhor teu Deus». Ser messias do prestígio é idolatria.

  1. Terceira tentação: realizar a justiça do Reino mediante o poder

O diabo volta à carga, propondo a Jesus realize a justiça do Reino mediante a usurpação do poder: Dar-Te-ei todos os reinos do mundo e as suas riquezas, se Te prostrares diante de mim e me adorares».

Os adversários de Jesus diziam que Ele expulsava os demónios por ordem de Belzebu, chefe dos demónios (cf. Mt 12,25-28). Jesus é tentado a realizar a justiça do Reino tornando-Se chefe político de uma sociedade injusta. Como poderá realizar a justiça do Reino tornando-Se dono da vida e controlando a liberdade das pessoas?

Jesus recusa-Se a ser o messias do poder: «A Escritura diz: Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a Ele servirás». A citação completa desse versículo do Deuteronómio mostra claramente que absolutizar-se no poder é repetir a ação opressora do Faraó. Além disso, a última tentação revela claramente que os reinos do mundo e as suas riquezas são coisas diabólicas. Jesus tem outros caminhos para realizar a justiça do Reino.

O Evangelho deste 1º domingo da Quaresma termina dizendo que o diabo deixou Jesus, os anjos de Deus aproximaram-se e serviram-no. Vencidas as tentações da abundância, prestígio, e poder, Ele está pronto a proclamar e instaurar a justiça do Reino através da partilha, do cumprimento da vontade de Deus e do serviço até à doação da vida.

O Evangelho questiona-nos: Jesus realiza a justiça do Reino vencendo a tentação da abundância, prestígio e poder. Como vencer a tentação da ganância e do poder? Que significa, hoje não tentar o Senhor nosso Deus?

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