O episódio dos dez leprosos (que é exclusivo de Lucas) insere-se perfeitamente na óptica teológica de um evangelho cujo objectivo fundamental é apresentar Jesus como o Deus que Se fez pessoa para trazer, com gestos concretos, a salvação/libertação a todos os homens, particularmente aos oprimidos e marginalizados.
É esse o ponto de partida da história que Lucas nos conta: ele mostra que Deus tem uma proposta de vida nova e de libertação para oferecer a todos os homens. O número dez tem, certamente, um significado simbólico: significa “totalidade” (o judaísmo considerava necessário que pelo menos dez homens estivessem presentes, a fim de que a oração comunitária pudesse ter lugar, porque o “dez” representa a totalidade da comunidade). A presença de um samaritano no grupo indica, contudo, que essa salvação oferecida por Deus, em Jesus, não se destina apenas à comunidade do “Povo eleito”, mas se destina a todos os homens, sem excepção, mesmo àqueles que o judaísmo oficial considerava definitivamente afastados da salvação.
Contudo, o acento do episódio de hoje é posto – mais do que no episódio da cura em si – no facto de que, dos dez leprosos curados, só um tenha voltado para trás para agradecer a Jesus e no facto de este ser um samaritano. Lucas está interessado em mostrar que quem recebe a salvação deve reconhecer o dom de Deus e deve estar agradecido… E avisa que, com frequência, são os hereges, os marginais, os desprezados, aqueles que a teologia oficial considera à margem da salvação, que estão mais atentos aos dons de Deus. Haverá aqui, certamente, uma alusão à auto-suficiência dos judeus que, por se sentirem “Povo eleito”, achavam natural que Deus os cumulasse dos seus dons; no entanto, não reconheceram a proposta de salvação que, através de Jesus, Deus lhes ofereceu… Certamente haverá aqui, também, um apelo aos discípulos de Jesus, para que não ignorem o dom de Deus e saibam responder-Lhe com a gratidão e a fé (entendida como adesão a Jesus e à sua proposta de salvação).
A reflexão:
• A “lepra” que rouba a vida a esses “dez” homens que a leitura de hoje nos apresenta representa o infortúnio que atinge a totalidade da humanidade e que gera exclusão, marginalidade, opressão, injustiça. É a condição de uma humanidade marcada pelo sofrimento, pela miséria, pelo afastamento de Deus e dos irmãos, que aqui nos é pintada… Lucas garante, no entanto, que Deus tem um projecto de salvação para todos os homens, sem excepção; e que é em Jesus e através de Jesus que esse projecto atinge todos os que se sentem “leprosos” e os faz encontrar a vida plena, a reintegração total na família de Deus e na comunidade humana.
• É preciso ter uma resposta de gratidão e de adesão à proposta de salvação que Deus faz. Atenção: muitas vezes são aqueles que parecem mais fora da órbita de Deus que primeiro reconhecem o seu dom, que o acolhem e que aderem à proposta de vida nova que lhes é feita. Às vezes, aqueles que lidam diariamente com o mundo do sagrado estão demasiado cheios de auto-suficiência e de orgulho para acolherem com humildade e simplicidade os dons de Deus, para manifestarem gratidão e para aceitarem ser transformados pela graça… Convém pensar na atitude que, dia a dia, eu assumo diante de Deus: se é uma atitude de auto-suficiência, ou se é uma atitude de adesão humilde e de gratidão.
• Como lidamos com aqueles que a sociedade de hoje considera “leprosos” e que, muitas vezes, se encontram numa situação de exclusão e de marginalidade (os sem abrigo, os drogados, os deficientes, os doentes terminais, os idosos abandonados em lares, os analfabetos, os que vivem abaixo do limiar da pobreza, os que não têm telemóvel nem internet, os que não vestem de acordo com a moda, os que não pactuam com certos valores politicamente correctos, os que não consomem produtos “light” e não têm uma silhueta moderna, os que não frequentam as festas sociais nem aparecem nos programas televisivos de sucesso…): com desprezo, com indiferença, com medo de ficar contaminados ou como testemunhas da bondade e do amor de Deus?
• Curiosamente, os dez “leprosos” não são curados imediatamente por Jesus, mas a “lepra” desaparece “no caminho”, quando iam mostrar-se aos sacerdotes. Isto sugere que a acção libertadora de Jesus não é uma acção mágica, caída repentinamente do céu, mas um processo progressivo (o “caminho” define, neste contexto, a caminhada cristã), no qual o crente vai descobrindo e interiorizando os valores de Jesus, até à adesão plena às suas propostas e à efectiva transformação do coração. Assim, a nossa “cura” não é um momento mágico que acontece quando somos baptizados, ou fazemos a primeira comunhão ou nos crismamos; mas é uma caminhada progressiva, durante a qual descobrimos Cristo e nascemos para a vida nova.
