Em 2010, o P. Adolfo Nicolás, sacerdote jesuíta falava com a comunidade da Bélgica e referia algo que havia dialogado com universitários no México — a globalização da superficialidade. Diz o P. Adolfo que — «o mundo está a tornar-se muito superficial. Temos mais informação do que nunca, mas uma capacidade menor para pensar, reflectir e digerir essa informação. Então, existe uma globalização da superficialidade e nós movemo-nos por sentimentos com base na primeira informação que nos servem. E mesmo se as primeiras notícias estão totalmente desviadas da realidade são essas que se colam à nossa mente e não temos a capacidade de confirmar, estudar e ver se realmente são verdade ou não. E isto está, também, a acontecer na Igreja.» Creio que passados 12 anos, a situação no mundo de hoje não está muito diferente ou talvez se tenha agravado.
O tipo de discurso que ouvimos (ainda) sobre as vacinas da Covid-19 em muitos cristãos são um fruto da cedência à desinformação. O facto das pessoas lerem algo que alguém de confiança lhes partilha, sobretudo nas redes sociais, mesmo que não corresponda à realidade, é essa superficialidade que fica dentro de nós, afectando o modo de pensar e decidir. Depois, as pessoas procuram justificação para aquilo que pensam num artigo ou outro de alguém credenciado (que pode estar enganado ou mal interpretado) e desprezam os 100 artigos, também de pessoas credenciadas, que afirmam o contrário. Como podemos ajudar as pessoas a sair da superficialidade e a compreender o que se está a passar?
Em “Os Superficiais”, o jornalista Nicolas Carr diz que — «os media não são apenas canais de informação. Eles fornecem a matéria para o pensamento, mas formam, também, o processo de pensamento. E o que a Net parece estar a fazer é a retirar a capacidade para a concentração e contemplação.» A neuroplasticidade cerebral demonstra que o modo como pensamos não é determinado pelos nossos genes, mas pelo modo como vivemos. Se aprender um instrumento musical muda o nosso cérebro, também os nossos pensamentos exercem uma influência física sobre a massa cinzenta. De certa forma, podemos dizer que nos tornamos o que pensamos. E se o pensamento é incapaz de digerir toda a informação que recebe, tornando-se superficial, também nós, gradualmente, tornamo-nos superficiais.
No caso da Igreja corremos o risco de pensar que um discurso piedoso é o suficiente para ajudar as pessoas a entender o que vivemos, o que Deus nos chama a viver, e a convidá-las a fazer, na liberdade, essa experiência. Esperamos tocar o coração das pessoas falando da superioridade moral das nossas convicções, mas o mundo já não funciona assim. Esse discurso, na prática, torna-se mais uma adição à superficialidade que se vive, aumentando a sua globalização, também ao nível da espiritualidade e da vida que poderia ser profunda. Uma profundidade feita de silêncio, curiosidade, procura, paragem, paciência e ir a fundo nas questões.
Ian Stackhouse num livro de meditações intitulado “O Dia é Teu” (não traduzido para português) diz que — «temos medo de parar; tememos a normalidade que a vida, fora da via rápida, significará; receamos a nossa própria companhia. Uma das razões por que, tantas vezes, precisamos de consultar o correio eletrónico, estar sempre a enviar mensagens ou ver televisão com tanta frequência, é esta: a perspectiva de viver connosco mesmos é assustadora demais. Mas as consequências de vivermos em semelhante mundo acelerado estão agora a surgir. Em toda a parte, dentro e fora das comunidades religiosas, as pessoas começam a despertar para o facto de que semelhante estilo de vida é não só insustentável, mas também destrutivo.» — Num mundo acelerado é quase impossível pousar sobre os assuntos para reflectirmos sobre eles, e a superficialidade do sobrevoar constante pelo mar da informação que daí resulta destrói a oportunidade para crescermos em profundidade na nossa interioridade. Quer isso dizer que mais vale mantermo-nos na ignorância e diminuir os fluxos de informação?
Não é o facto de ser hoje possível transmitir a informação de modo mais acelerado que nos permite assistir às necessidades da comunidade humana noutra parte do mundo, como acontece agora com a Ucrânia? Será que a busca de profundidade acaba por desviar a nossa atenção da urgência em agir? De que serve reflectir sobre a fome se o que importa é dar de comer? No passado dia 14 de março, aos membros da associação “Anima” para o social nos valores da empresa, o papa Francisco diz — «é necessário resistir à tentação do ativismo e encontrar tempo para refletir, pensar, contemplar. Por vezes o ativismo destrói a nossa interioridade; não estou a falar de religiosidade, mas de interioridade humana. Depois, optar por uma religião é uma opção pessoal, mas antes há a interioridade humana.»
Sair da globalização da superficialidade significa saber aprender a construir uma interioridade humana pautada por uma vida profunda. Uma vida informada, mas que reflecte sobre o que ouve e aprende a discernir as fontes credíveis das que alimentam teorias da conspiração ou desinformam. E não vale a pena prestar atenção à desinformação para estarmos a par daquilo que desinforma. A melhor forma de propagar uma desinformação é continuar a falar sobre essa.
A nossa capacidade de comunicar ideias, experiências e acontecimento é ímpar na história humana, mas exige o desenvolvimento simultâneo da nossa capacidade para interpretar os conteúdos comunicados. Esta capacidade requer o tempo que muitas pessoas pensa não ter, mas que se pode cultivar se reduzirmos a quantidade de informação consumida, focalizando os nossos interesses.
Antigamente, as pessoas eram capazes de ler um livro durante algum tempo, uma notícia de jornal ou reportagem até ao fim. Hoje, se não nos fizerem compreender o conteúdo no primeiro minuto, quebra-se a nossa atenção e perdemos o interesse. Há que reparar a nossa capacidade de prestar atenção e saber juntar as linhas que perfazem o tecido da realidade. Saber distinguir a informação relevante da irrelevante, isto é, aquilo que é sinal no meio de algum ruído. No sinal intuiremos a Voz do Espírito Santo que nos conduz no caminho da profundidade.
Fonte: https://agencia.ecclesia.pt/
Autor: Miguel Oliveira Panão