Deus não abençoa guerras nem violências contra ninguém

Andam por aí muitas confusões à volta de Deus e das religiões. E o mais chocante e incompreensível é que são as próprias religiões a colaborar para a confusão, quando deveriam contribuir para a clarificar e purificar. Vou servir-me da atualidade, mas todas as religiões têm um baú de barbaridades e contradições, de que pouco ou nada se orgulham. Desde o início da guerra da Rússia à Ucrânia, a igreja ortodoxa russa tem sido uma fonte de perplexidades, nomeadamente pela voz do Patriarca de Moscovo, Kirill. Já se sabia que era um grande amigo de Putin, considerou, desde a sua aurora, o seu governo “uma bênção de Deus”, e elogiou e aprovou a guerra contra a Ucrânia. Algumas das suas últimas intervenções não podem deixar de escandalizar e confundir os crentes e os homens de boa vontade, como prometer aos militares russos a lavagem dos pecados pelo cumprimento do serviço militar na guerra, com a possível morte. Primeiro pergunta-se como é que uma religião cristã pode apoiar um regime ditador e oligarca como é o regime de Vladimir Putin. Depois pergunta-se como é que se pode obter qualquer graça ou indulgência de Deus, combatendo-se numa guerra em que a Rússia não foi atacada, uma guerra que é profundamente insustentável, injusta e imoral, levada a cabo ao arrepio de todos os acordos e tratados internacionais, que a Rússia assinou. Nenhum sacrifício da vida vale o que quer que seja numa guerra profundamente cruel e sem sentido. O que dizer quando se descobrem valas comuns onde estão enterrados, na sua maioria, velhos indefesos e enterradas mulheres e crianças que foram barbaramente torturadas e assassinadas? Quem fez isto ainda vai ter um perdão dos pecados?

É lamentável vermos uma religião cristã provocar tantos equívocos e gerar tantas contradições, que são um tenebroso contratestemunho, em profunda infidelidade ao Evangelho. É o que dá a religião viver colada ao poder, aliança que nunca dá bons resultados para os interesses de Deus e para a verdade do Evangelho. As Igrejas e as religiões devem estar acima e além de todo e qualquer poder, para não perderem a sua consciência crítica e a sua liberdade no anúncio e testemunho do Evangelho de Jesus Cristo. Quando religião e poder entram em núpcias, há uma grande probabilidade de uma confissão religiosa distorcer a sua mensagem e trair a sua missão.

Na Bíblia, todos conhecemos a célebre passagem do livro do Génesis, em que Abraão se dispôs a cumprir a ordem de Deus de sacrificar o seu próprio filho Isaac, matando-o num altar. A cena ainda hoje escandaliza, reveste-se de uma especial dramaticidade, gerou e gera muita acesa discussão à volta de Deus, como é que Deus se pode revestir de tamanha crueldade. Contudo, essa não é a questão, nem o tema. A mensagem é muito mais profunda. Na dita cena, no derradeiro instante do sacrifício, em que a sombra do cutelo já pendia sobre o filho amarrado, Deus manda suspender o sacrifício. É aqui que está a grande e luminar mensagem: não se pode matar ou sacrificar ninguém em nome de Deus ou de qualquer outro valor dito supremo. Abraão ia fazê-lo, obedecendo cegamente a Deus, o tal valor supremo, mas Deus não quer isso. Em nome de Deus, ninguém está autorizado a levantar a mão contra outro ser humano. Já chega de violência entre seres humanos por causa de Deus! Os dez mandamentos não querem dizer outra coisa, e Jesus aclarou isto mesmo de forma nova e límpida. Não há qualquer violência que se justifique entre pessoas humanas em nome de sistemas de valores, por muito superiores que possam ser. Costuma-se dizer que outros valores se levantam, mas não para matar, esmagar ou aniquilar o outro em nome de Deus. Jamais Deus exige o que quer que seja contra o ser humano. Isso não passa de pura idolatria e trampa ideológica para se manter o poder e atingir a concretização dos interesses humanos, como se tem visto nesta guerra da Ucrânia, com o patrocínio da bênção de um líder religioso para se defender, segundo dizem, uma certa luminosa e superior civilização cristã, a luz contra as trevas, a pureza contra a podridão e a devassidão, os “bons valores” contra a decadência.

Ainda assim, brilha o Papa Francisco ao não se cansar de pedir a paz. Quando um jornalista lhe pergunta, num podcast, o que gostaria de pedir como presente, no marcante aniversário que celebra à frente da Igreja Católica, o Papa responde: “A paz, precisamos de paz”.

Não há guerra nenhuma que se justifique e que seja inevitável. E confesso que senti sempre no ar a impressão de que não se fez tudo para evitar a guerra contra a Ucrânia e não se está a fazer tudo para a parar. Fora o Papa Francisco, e quando em vez António Guterres, no ocidente só se fala de armamento e cedência aos interesses da indústria belicista. É confrangedor não se ouvirem vozes firmes e tonitruantes na defesa da paz e a propor caminhos de paz.

Na criação do Dia Mundial da Paz, em 1967, O Papa Paulo VI afirmou: “a paz é possível, se for verdadeiramente querida; e se a paz é possível, ela é obrigatória”.  A caminho da celebração de mais uma Páscoa, que nós católicos nos unamos mais à volta da paz e façamos por fazer chegar o apelo do Papa Francisco, que é um apelo da Páscoa, que se a paz é possível, então, “paz, precisamos de paz”.

 

 

Fonte: https://agencia.ecclesia.pt/

Autor:Pe. Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Check Also

Missa de 7º Dia do Monsenhor Cónego José Pedro de Jesus Martins

Missa de 7º Dia pelo Monsenhor Cónego José Pedro de Jesus Martins, na próxima quinta-feira …

Sahifa Theme License is not validated, Go to the theme options page to validate the license, You need a single license for each domain name.