Se a Semana Santa hoje em dia representa pouco mais que alguns feriados no calendário, é porque também a Quaresma perdeu seu sentido. (1)
A ideia de que o homem deve apaziguar a divindade ofendida por seus crimes, submetendo seu corpo à expiação, é uma tradição de quase todos os povos, mesmo primitivos. Nós, católicos, encontramos constantes exemplos disso na Sagrada Escritura.
A consciência da necessidade dessa expiação levou a Igreja, sempre Mestra infalível, a preceder a comemoração de três dos maiores mistérios de nossa Redenção — a Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo — de 40 dias de oração e penitência, em memória dos 40 dias de jejum do Divino Salvador na montanha.
Infelizmente a cada ano a Quaresma e a própria Semana Santa vão perdendo seu sentido num mundo cada vez mais materializado, não significando hoje senão alguns feriados no calendário, ótimos para um bom weekend. O que interessa ao mundo hodierno é gozar, gozar e gozar.
Parece então oportuno relembrar, neste fim de Quaresma e entrante Semana Santa, o estado de espírito com que os cristãos de outrora viviam essas comemorações.
Quaresma: tempo de oração e penitência
Assim São Leão Magno definiu, no século V, o significado da Quaresma: “A sabedoria divina estabeleceu este tempo propício de quarenta dias, a fim de que as nossas almas se pudessem purificar, e, por meio de boas obras e jejuns, expiassem as faltas passadas. Inúteis seriam, porém, nossos jejuns se, neste tempo, nossos corações se não desapegassem do pecado” (2).
É por isso que, antecipando de alguns dias a Quaresma, a Igreja unge a fronte culposa do fiel na Quarta-Feira de Cinzas, admoestando-o: “Lembra-te de que és pó, e que em pó hás de tornar“.
Nos primeiros séculos de cristianismo, só os pecadores públicos desejosos de se reconciliarem com a Igreja recebiam nesse dia as cinzas. Depois essa prática foi estendida a todos, como pecadores diante de Deus.
O estado de espírito penitencial e confiante na misericórdia divina, com que devemos viver o tempo quaresmal, vem muito bem expresso no Tracto da Missa de Quarta-Feira de Cinzas com as belas palavras do Rei-Penitente, David: “Senhor, não nos trateis segundo nossos pecados nem nossas iniqüidades. Não Vos recordeis, Senhor, de nossos delitos, mas antecipem-se depressa vossas misericórdias, porque fomos reduzidos à extrema miséria. Ajudai-nos, ó Deus Salvador nosso, e para glória do vosso Nome, livrai-nos, Senhor, e sede propício apesar de nossos pecados, por causa de vosso Nome” (Ps. 102, 10).
Além do coração contrito e humilhado com que o fiel deve preparar-se para o grandioso drama da Paixão, a Igreja impõe também uma penitência exterior. É a razão do jejum e da abstinência, infelizmente, hoje em dia — dada a nossa fragilidade e moleza para o que é bom — obrigatórios apenas na Quarta-Feira de Cinzas e Sexta-Feira Santa.
Tempo de mais fé houve em que o jejum e a abstinência eram muito mais rigorosos, chegando mesmo a três vezes por semana durante a Quaresma. E ovos e laticínios eram proibidos, por serem produtos animais. Algumas Igrejas do Oriente ainda observam essa norma.
A abstinência de carne era prescrição tão rigorosa, que mesmo reis e governantes necessitavam de dispensa papal quando não a podiam seguir.
A não observância da Quaresma: ruína para indivíduos e nações
Sendo, como já foi dito, os exercícios da Quaresma indispensáveis como preparação para a Semana Santa, Bento XIV, em 30 de maio de 1741, chegou a afirmar: “A observância da Quaresma é o laço de nossa milícia; por ela nos diferenciamos dos inimigos da Cruz de Jesus Cristo; por ela nos esquivamos dos açoites da cólera divina; por ela, amparados com a ajuda celestial durante o dia, nos fortalecemos contra os príncipes das trevas. Se sua observância se relaxa, cai em desdouro a glória de Deus, desonra a Religião Católica e perigam as almas cristãs. E não há dúvida de que este descuido seja fonte de desgraças para os povos, desastres nos negócios públicos e infortúnios para os indivíduos” (Constituição “Non Ambigimus”). Se hoje em dia a Semana Santa perdeu praticamente todo seu significado, é porque a Quaresma já não tem mais nenhum.
Conscientes disso, governantes verdadeiramente cristãos dos primeiros séculos da Igreja, como Graciano e Teodósio, chegaram a ordenar, em 380 DC, a suspensão de todos os processos e demandas judiciais durante esse período, medida que vigorou por vários séculos.
Também com esse espírito o Papa São Nicolau I proibiu, no século IX, a caça, esporte predileto da nobreza da época. A dissipação e o tumulto que acompanham tais exercícios são incompatíveis com o espírito de recolhimento da Quaresma, afirmou aquele Pontífice. Seria pensável algo semelhante hoje em dia, com tantas competições esportivas endeusadas pelo povo?
A Igreja ia mais além, recomendando que se suspendessem todas as hostilidades e atividades militares não estritamente necessárias para a manutenção da ordem.
Pasme nosso século sensual e prevaricador! De tal maneira o espírito do povo estava impregnado com esse caráter penitencial e reparador da Quaresma que, durante muitos séculos, foi possível à Igreja obter dos esposos a continência absoluta durante esse período. Além da penitência muito agradável a Deus, que isso supunha, ajudava os fiéis a refrear a sedução para o prazer, ordenar os instintos sensuais do próprio corpo, e a valorizar mais a dignidade de sua alma.
Durante séculos, toda festividade civil e religiosa foi excluída do período Quaresmal para preservar seu caráter austero. Exceção foi feita posteriormente quanto à comemoração da Anunciação, por causa de seu grande significado. Tempos mais tarde, abriu-se também uma exceção para a festa do Apóstolo São Matias, em 24 de fevereiro.
Os Alleluias, o Glória e o Te Deum eram suspensos da liturgia. Uma imensa cortina roxa era colocada entre o altar e os fiéis como símbolo do luto penitencial a que o pecador deve submeter-se para contemplar novamente a majestade do Deus que ofendeu por suas maldades. Significava também as humilhações de Cristo durante Sua Paixão.
Em muitas igrejas, costumava-se cobrir de roxo as imagens e cruzes a fim de inspirar mais viva compunção nos fiéis ao contemplar esses velados objetos de piedade. O velar a cruz expressava a humilhação de Nosso Senhor, obrigado a ocultar-se, como se lê no Evangelho do Domingo da Paixão, para evitar ser apedrejado pelos judeus.
Durante esse período, multiplicavam-se os atos de piedade, como visitas a igrejas, adorações ao Santíssimo, e, sobretudo, o piedoso exercício da Via-Sacra.
Chegava-se, assim, à Semana Santa. Se durante a Quaresma a Igreja havia proposto à meditação dos fiéis o jejum de Cristo, a liturgia agora voltava-se para a consideração de Suas dores e paixão. Nestes dias, o rigor do jejum da Quaresma aumentava antigamente, como num supremo esforço de reparação e penitência.
Naqueles tempos de fé, a lei civil apoiava a eclesiástica para que fossem suspensos trabalho e comércio, expressando assim o luto da Cristandade pelo falecimento do Redentor. As preocupações de ordem material davam lugar às de ordem espiritual, e o pensamento da Paixão impregnava a todos. Mesmo as relações ordinárias eram reduzidas ao indispensável, para que outro objeto não distraísse a atenção dos fiéis.
Fonte: http://catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=76C01B64-3048-560B-1C953F0E19DE7ED0&mes=Mar%C3%A7o199