Entrar na torrente da alegria (EG 4-5)
Evangelii gaudium: “A alegria do Evangelho” – o Evangelho, diz-nos o Papa Francisco logo no título da sua Exortação, é fonte de alegria. Evangelizar não pode deixar de constituir um anúncio alegre que, simultaneamente, confere à vida daquele que evangeliza e daquele que é evangelizado uma característica de alegria, não como consequência acessória mas como critério da própria verdade e fruto do conteúdo do Evangelho.
Acolher o Evangelho não é só acolher um conjunto de doutrinas ou de utopias humanas. É acolher o próprio Jesus. O Evangelho é a pessoa de Jesus, e não apenas as palavras que Ele proclama ou os gestos que realiza, como mostra com clareza S. Lucas, ao narrar o episódio de Zaqueu que, após ter escutado o convite do Senhor, “desceu rapidamente e acolheu Jesus com alegria” (Lc 19,6).
Mesmo quando denuncia e nos confronta com o pecado, o Evangelho constitui sempre uma “alegre notícia” porque não se limita a colocar em evidência o mal que praticámos e no qual vivemos. Antes disso, já o anúncio evangélico nos fez tomar consciência do amor infinito de Deus por cada pecador (por cada um de nós e por todos), manifestado em Jesus de Nazaré; e porque este amor contrasta radicalmente com o pecado, o Evangelho provoca então em nós a dor espiritual e a necessidade e a alegria da conversão.
Todo o Homem procura a alegria. Contudo, neste mundo, essa alegria é sempre imperfeita enquanto não for acolhida como dom do Espírito Santo. A multiplicação da procura dos prazeres do mundo anda, ontem como hoje, a par da procura da verdadeira alegria e (simultaneamente) da impossibilidade de o ser humano a gerar por si mesmo (cf. GD p.10)1. Como afirmou o Beato Paulo VI:
A alegria é espiritual. Assim, o dinheiro, o conforto, a higiene e a segurança material muitas vezes não faltam; e, apesar disso, o tédio, o mau humor e a tristeza continuam a ser a sorte que a muitos cabe. E isto, não raro, até ao ponto de se tornar angústia e desespero, que a aparente ausência de cuidados, o frenesim da felicidade presente e os paraísos artificiais não conseguem eliminar. […] Será, portanto, mediante um tornar-se presente a Deus, principalmente, e um consequente afastar-se do pecado, que o homem poderá entrar, verdadeiramente, na alegria espiritual. A carne e o sangue são, sem dúvida, incapazes disso. Mas a Revelação pode abrir esta perspectiva, e a graça pode operar esta conversão (GD pp. 11.14).
O mesmo Papa dá-nos uma definição da “alegria cristã”: “é a participação espiritual na alegria insondável, conjuntamente divina e humana, que está no coração de Cristo glorificado” (GD p. 15).
Na Exortação Apostólica em que convoca toda a Igreja para um renovado empenho na tarefa da evangelização, o Papa Francisco não deixa de notar, em dois parágrafos como, na Sagrada Escritura, entre “Evangelho” e “alegria” encontramos duas realidades que se requerem uma à outra, e que constituem o fruto da presença de Deus na história humana. São estes dois números que agora vos convido a reler.
Notemos, antes de mais, que o Papa Francisco não nos oferece um tratado sobre a alegria na Sagrada Escritura, com a preocupação de elencar os diferentes matizes que o conceito assume no Antigo e no Novo Testamento. O Santo Padre preocupa-se antes em fazer ressaltar a participação humana na alegria divina.
A alegria está presente em toda a Sagrada Escritura. É verdade que na Escritura encontramos a tristeza (e mesmo a vergonha) causada pelo pecado humano; mas é igualmente verdade que o convite à alegria é quase omnipresente, seja no Antigo seja no Novo Testamento. Estamos bem longe do pessimismo derrotista do fado mitológico ou ainda de um qualquer divertimento humano que, como vemos em tantos programas de TV, à viva força, procura esquecer os momentos de tristeza e dificuldade, para arrancar alguns minutos hilariantes, passageiros, e de sabor sempre superficial que, por isso, são repetidos até à saciedade, confessando, assim, a sua imperfeição e limite.
1. O Antigo Testamento: alegria do homem, da natureza, de Deus
No Antigo Testamento encontramos, por vezes, referências a estes “divertimentos simplesmente humanos”, como é o caso dos banquetes oferecidos pelos poderosos, ignorando o sofrimento do povo. Contudo, são bem mais frequentes as referências à alegria vivida fruto de uma intervenção divina num determinado momento da história (cf. Ex 15) ou à alegria esperada para os tempos do Messias.
Como afirma Paulo VI, na Exortação Gaudete in Domino, no Antigo Testamento vem-nos ao encontro uma alegria que se amplia e comunica, sempre ameaçada e sempre a renascer, fruto duma experiência de libertação com origem no amor misericordioso de Deus para com o Seu Povo, figura da libertação definitiva trazida por Jesus; uma alegria sempre actual, de viver com Deus e para Deus; uma alegria “gloriosa e sobrenatural profetizada em favor da nova Jerusalém resgatada do exílio e amada pelo próprio Deus com um amor místico” (GD p. 16).
Nos parágrafos 4 da Evangelii gaudium, o Papa Francisco faz referência a 7 das imensas passagens veterotestamentárias em que Israel é convidado à alegria. Delas, 4 são retiradas do profeta Isaías, a que o Papa acrescenta Zac 9,9 e Sof 3,17. Para além dos profetas, é aberta a excepção para uma referência à alegria quotidiana, incitando a não nos privarmos dela, desde que legítima, com Sir 14,11.14.
Isaías é, sem dúvida, o “profeta da alegria”. O convite à alegria é frequente ao longo de todo o livro, com uma preponderância que contrasta com os demais escritos proféticos.
Duas das passagens referidas pelo Papa Francisco (9,2 e 12,6) são retiradas do chamado “Livro do Emanuel”, que ocupa os capítulos 6-12 de Isaías, quando o Profeta é enviado a Acaz (por volta de 740 aC) para se opor às alianças do rei e anunciar a sua falência e derrota, bem como para anunciar a vinda do “Emanuel” (7,14), da salvação de que ele é portador e que se realizará por intervenção divina (9,2) – e que S. Mateus não hesita em aplicar ao próprio Jesus e ao início do seu anúncio evangélico (Mt 4,12-17).
Diz Isaías, depois de anunciar a luz do Salvador: “Multiplicastes o povo, deste-lhe grande alegria: eles alegram-se na tua presença como se alegram os ceifeiros na ceifa, como se regozijam os que repartem despojos”. E, mais à frente, no poema conclusivo do Livro (Is 12) e referindo-se uma vez mais à intervenção salvadora de Deus, depois de ter afirmado que o povo há-de, com alegria, saciar-se das fontes da salvação (v. 3), o Profeta termina: “Ergue gritos alegres, exulta, ó morada de Sião, porque é grande no meio de ti o Santo de Israel” (12,6).
Para o Profeta, a intervenção de Deus em favor do seu povo – ou seja: a vinda do Emanuel, do “Deus connosco” – é tão grande e segura quanto a alegria dos ceifeiros perante a colheita, ou a dos guerreiros que, no final da vitória repartem entre si os despojos. Por isso, Israel não pode ficar calado: à grandeza da presença divina na sua vida o povo corresponderá, melhor: saberá colher uma alegria contagiante.
Mas se, apesar disto, a leitura dos primeiros 39 capítulos de Isaías nos deixa a impressão de um tom profético essencialmente denunciador, tal percepção transforma-se radicalmente no chamado “Livro da consolação de Israel” (Is 40-55) – não sem razão atribuído pela exegese contemporânea à pena doutro escritor sagrado.
Logo a abrir o Livro da Consolação encontramos uma “cantata a diversas vozes”2 que anuncia o fim da escravidão e o início de um novo Êxodo conduzido por Deus (40,9) e pelo seu Servo. E, após o chamado “segundo canto do Servo” (49,1-7) é a criação inteira que é convidada a participar na alegria da salvação: “Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos desamparados” (49,13).
À certeza da intervenção divina, ao convite à alegria contagiante por parte de Israel é agora chamada a associar-se a própria natureza, não por qualquer coisa que Deus tenha realizado directamente em seu favor mas porque “o Senhor consola o Seu povo e se compadece dos desamparados”.
Este convite vai ainda mais longe se lermos a passagem de Sofonias (3,17) referida pelo Papa Francisco: «O Senhor, teu Deus, no meio de ti é um poderoso salvador! Exultará de alegria por tua causa, com o seu amor te renovará. Exultará por tua causa com cânticos de alegria».
Como vemos, a alegria é dita do próprio Deus: a salvação do Seu Povo faz Deus exultar de alegria. Ezequiel afirma o mesmo, ainda que de um modo negativo: “Afinal, teria Eu alguma alegria na morte do ímpio? — Oráculo do Senhor Deus — Ao contrário, não me dá muito mais prazer ver o ímpio converter-se dos seus maus caminhos e viver?” (Ez 18,23; cf. 33,11).
2. O Novo Testamento: participantes da alegria de Jesus
A vinda e a presença de Cristo no seio da história farão com que a alegria que marca o Antigo Testamento se veja redobrada. Para além da presença de Deus no seio da história, agora não apenas percebida nos seus efeitos salvadores, como acontecia na Antiga Aliança, mas concreta, vista, escutada, palpável (1Jo 1), encontrada na pessoa de Jesus, é toda a expectativa do Povo de Deus que não apenas se vê realizada como até mesmo ultrapassada. Mais ainda: é a alegria a que todos são convidados, vindos de todos os povos e nações. O mesmo é, também, dizer: “todos aqueles que, no decorrer dos tempos, virão a acolher a Sua mensagem” (GD p. 17).
Para além das “alegrias humanas” vividas por Jesus em acção de graças ao Pai (GD p. 19), encontramos igualmente no Novo Testamento a alegria experimentada pelo Senhor e que é fruto da constante e singular presença do Pai: dela nos dá particular testemunho o evangelho de S. João, em passagens centradas no mistério pascal e no convite à vivência cristã.É precisamente a “cruz gloriosa” que o Papa Francisco não hesita em colocar no centro da sua leitura neotestamentária do convite à alegria: “O Evangelho – afirma o Papa logo no início do n. 5 da Exortação –, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente à alegria”.
Não se detém, por isso, o Santo Padre nas referências à alegria que é própria de Jesus. Sobre esta faz apenas uma referência, ao afirmar que “o próprio Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo” (Lc 10, 21).
As outras passagens que o Papa Francisco refere testemunham antes o convite à participação humana na alegria de Jesus, que é a alegria de Deus ao oferecer-nos a salvação. Em primeiro lugar, no chamado “Evangelho da Infância” de S. Lucas. Aqui a Virgem é convidada à alegria pelo Anjo que Lhe foi enviado da parte de Deus, porque Ela foi plenificada pela graça divina: “Alegra-Te, ó cheia de graça”.
A esta plenitude da graça, que o “Sim” virginal de Maria permitiu se fizesse carne no Seu ventre, corresponde, depois, o próprio João Baptista, ainda no seio de sua mãe, Isabel, exultando quase prematuramente de alegria, e como que dando voz não só à esperança do Antigo Testamento como a toda a humanidade ainda por nascer perante o milagre a que assistia da presença de Deus na plenitude da história (Lc 1,41; cf. Gal 4,4). Aliás, no quarto evangelho, e como recorda o Santo Padre, o mesmo Baptista afirmará ao encontrar-se com Jesus: “Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!” (Jo 3, 29).
Mas o Papa não pode ainda deixar de referir a alegria da Virgem Maria quando confrontada com este alegre acolhimento humano da salvação divina, assumindo-se não só como porta-voz mas também como “resumo” da humanidade redimida, ao entoar o Magnificat: “O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lc 1,47).
O Papa Francisco faz ainda notar com insistência como Jesus convida os seus discípulos à participação da Sua alegria, o mesmo é dizer, do Seu “coração transbordante”: “Manifestei-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa” (Jo 15,11).
Estas palavras do Senhor são pronunciadas durante a Última Ceia, logo após a imagem da videira e dos sarmentos e a afirmação da necessidade de “permanecer” no Senhor como condição para dar muito fruto e ser discípulo de Jesus. Permanecer no amor é guardar os mandamentos de Jesus como Ele o fez do Pai (v.10) e amar o irmão como Jesus amou os discípulos, ou seja, dando a vida (porque “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos” – v. 13). Nisso se resume tudo – tudo o que o Senhor escutou do Pai e tudo o que nos quis dar. A alegria do cristão torna-se, deste modo, sinónimo da própria vida cristã, do receber e permanecer na vida divina – aquela que, desde sempre o Verbo recebe do Pai e da qual faz participantes os seus.
Mas é uma alegria que se encontra bem distante daquela alegria fácil, do divertimento inventado pelos homens. É uma alegria que brota do mistério pascal, da cruz gloriosa, afirma Jesus logo a seguir – e o Santo Padre recorda-o.
É, aliás, o próprio Senhor quem contrapõe a alegria do mundo à alegria cristã. Com efeito, no capítulo 16 do evangelho de S. João Ele não hesita em se referir aos acontecimentos da cruz que estão para ter lugar (e que englobam todos aqueles outros acontecimentos que marcam a presença da cruz na vida cristã): “chorareis e lamentar-vos-eis, enquanto o mundo se alegrará; entristecer-vos-eis mas a vossa tristeza transformar-se-á em alegria” (Jo 16,20). E o Beato Paulo VI comenta:
O mundo – aquele mundo que é inepto para receber o Espírito da Verdade, que ele não vê nem conhece – não se apercebe senão dum aspecto das coisas. Ele considera apenas a aflição e a pobreza do discípulo, enquanto este permanece sempre, no mais íntimo de si mesmo, na alegria, porque ele está em comunhão com o Pai e com o Seu Filho, Jesus Cristo (GD p. 25).
E essa alegria, que é dom do Ressuscitado, será de tal forma perene e firme, sólida, que nenhum acontecimento ou ninguém a poderá tirar aos discípulos porque é dom de Deus: “Eu hei-de ver-vos de novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria” (Jo 16, 22).
E, de facto, quando o Ressuscitado se faz encontrar pelos discípulos, na tarde de Páscoa, eles “alegraram-se ao verem o Senhor” (Jo 20,20). Diz o texto grego, usando a mesma palavra que o Anjo empregara para saudar a Virgem Maria, e a que já fizemos referência. É a alegria realizada, perfeita, do discípulo que faz da sua carne o lugar de acolhimento do mesmo Verbo de Deus, que dá, na sua existência quotidiana, carne à vida divina a frutificar no sei da história.
É a alegria da fé – aquela mesma que constantemente nos surpreende ao longo do Livro dos Actos dos Apóstolos, como marca da vida cristã. Como nos recorda o Papa Francisco:
O livro dos Actos dos Apóstolos conta que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por onde passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no meio da perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco, recém-baptizado, «seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus» (16, 34).
Esta alegria que marca a vida de Jesus, daqueles que são os seus discípulos e daqueles outros que acreditam depois deles é pois uma realidade sempre presente, que chega até nós daquele acontecimento primeiro, e que se destina a todos. É a alegria do Reino de Deus que nos envolve, nos conduz à plenitude e que é fruto da presença, entre nós, do Espírito do Senhor ressuscitado, vivo.
Dito com palavras do Papa Paulo VI, a alegria tal como nos é apresentada no Novo Testamento mostra-se como “uma torrente que transborda” (GD p. 17). É a abundância da presença de Deus no meio de nós e do mundo, e a surpresa inabalável da vida divina que nos é dada participar tal como surgiu, inesperada mas arrebatadora, do sepulcro do Senhor.É por isso que não podemos deixar de tomar a sério – para nós e para o mundo inteiro – o convite que o Papa Francisco faz no final dos dois números dedicados à presença da alegria na Sagrada Escritura: “Porque não havemos de entrar, também nós, nesta torrente de alegria?” (EG 5).
+ Nuno, Bispo Auxiliar de Lisboa
II Domingo da Quaresma
Sé Patriarcal, 1 de Março de 2015