1. A Quaresma, primavera da alma
A Quaresma é inaugurada solenemente com o rito penitencial de imposição das Cinzas. Ao mesmo tempo, na Mesa da Palavra, acolhemos um vibrante apelo à conversão pessoal, à mudança de vida.
• Conversão pessoal. Mais do que os sinais exteriores de penitência, o Senhor deseja a nossa mudança de coração.
Deus quer em nós um coração sensível, limpo, normal. Peçamos-Lhe que cumpra em nós o que prometeu pelo profeta Ezequiel: Hei-de arrancar-te do peito o coração de pedra e dar-te um coração de carne.
É preciso centrar a nossa atenção nos pensamentos e sentimentos do coração, sobretudo em relação às outras pessoas, corrigindo as alergias e repugnâncias não cristãs.
Começando pelo que é mais importante, deve desaparecer em nós qualquer sombra de ódio ou mal-querença. Não podemos excluir ninguém do nosso amor ao próximo.
É insensibilidade também a indiferença perante os problemas e dificuldades dos outros, sobretudo se as não conseguem resolver sem ajuda.
É urgente que peçamos ao Senhor um coração caridoso e limpo. A imundície moral torna as pessoas cruéis, insensíveis. O demónio aposta na imundície moral das almas, como plano inclinado para as fazer resvalar até ao abismo. Torna-as escravas, prisioneiras, impedindo-as de gozar a alegria e liberdade dos filhos de Deus.
«Diz agora o Senhor: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração com jejuns, com lágrimas, com gemidos.»
• Contrição das ofensas a Deus. A palavra hebraica “converter” significa arrepiar caminho”. É indispensável reconhecer humildemente que nos enganamos e caminhamos em sentido oposto àquele em que devíamos caminhar. Os desvios introduzem-se a pouco e pouco na nossa vida e acabamos por não os ver, ou desculpá-los com o nosso feitio, o ambiente e com outras desculpas.
A falta de luta espiritual causa em nós a insensibilidade perante as nossas faltas e um desconforto espiritual que nos leva a andar de mau humor.
Pode ajudar-nos à contrição dos pecados a meditação mais assídua da Palavra de Deus, como está indicado especialmente para a Quaresma, de modo particular, a Paixão de Jesus.
Se fizéssemos a qualquer amigo da terra o que fazemos a Deus, no que se refere a indiferenças, agravos, ou faltas de atenção, onde estaria a nossa amizade agora?
«Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes, convertei-vos ao Senhor, vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia.»
• Esperança na luta espiritual. A primeira tentação que nos assalta é a de pensar que não somos capazes de mudar. Já o tentamos de outras vezes e voltamos ao mesmo. Para quê ter ilusões?
Concretizemos a luta espiritual e não fiquemos em propósitos genéricos de “hei-de ser melhor… Vou mudar…”
Procuremos usar os meios que o Senhor nos oferece: fugir das ocasiões, orar e frequentar os sacramentos. De outro modo, seríamos como o aluno que passa a vida a sonhar com um curso brilhante, mas não vai às aulas, nem estuda.
«Quem sabe? Talvez Ele mude de ideia e volte atrás, deixando, ao passar, alguma bênção, para oferenda e libação ao Senhor vosso Deus!»
• A pedagogia divina da cinza. Receber na fronte as Cinzas no primeiro dia da quaresma é um ato de humildade. Gostamos de nos identificar com os melhores do Povo de Deus, e aqui fazemos precisamente o contrário. A cinza fala-nos de algo que foi destruído pelo fogo e se converteu, por isso, de nocivo em útil.
Não nos importamos que nos considerem santos, embora protestemos, por delicadeza, mas fugimos de nos confundirmos com os pecadores. E, no entanto, é entre eles o nosso verdadeiro lugar e aceitamos esta verdade quando nos é imposta a cinza.
Lembra-nos também que tudo o que temos e fazemos, na hora da partida para a eternidade, ficará transformado em cinza, excepto o que fizermos por Amor. Nenhuma obra de arte resiste ao tempo. A terra está cheia destas ruínas, algumas delas já sepultadas. Só ficará o amor com que forem realizadas.
Participar no rito das cinzas significa estar decidido a recomeçar, com nova generosidade e vigor, a luta pela santidade, fazendo tudo por amor.
Recomeçar é a palavra de ordem na Quaresma, embora sabendo que vamos recomeçar a vida inteira. Com este propósito abraçamos o projecto de Deus na Quarta Feira de Cinzas.
Recomeçamos nas nossas práticas religiosas, acabando com a rotina; recomeçamos nesta ou naquela virtude humana que nos custa mais a viver; recomeçamos na alegria, ao renovar a alegria nas mortificações que temos de exercitar todos os dias: levantar da cama pontual; o trabalho sem lamúrias, nem queixumes; o comer com alegria o que nos preparam, sem procurarmos nada de especial; o sorrir quando menos nos apetece, combater o pensamento de nos julgarmos vítimas incompreendidas e injustiçadas… são algumas das muitas situações em que já nos mortificamos, mas nos esquecemos de oferecê-lo a Deus.
Então poderemos dizer com verdade: «0 Senhor encheu-se de zelo pelo seu país e teve compaixão do seu povo.»
2. O programa desta Quaresma
• A esmola que damos. A Quaresma é um tempo propício para nos desprendermos de algo para o darmos.
O jejum não tem por finalidade melhorar a nossa imagem física, nem sequer a saúde, nem aumentar as economias, mas renunciar a gastar para o distribuir aos mais necessitados.
Há muitas esmolas que podemos dar, sem que a pessoa contemplada por nós se sinta humilhada: a esmola de ouvir com a atenção o que nos dizem, em vez de falarmos sempre; a esmola de um sorriso, mesmo quando a nossa disposição não é a ideal; a esmola de um bom conselho dado com sensatez, mesmo quando gostaríamos de não discordar; a esmola de corrigir com delicadeza os erros de doutrina ou de moral que proclamam na nossa presença.
«Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo; e teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te.»
• O jejum que praticamos. O jejum faz referência, em primeiro lugar, à mortificação do apetite no comer e no beber.
Mas há muitas outras coisas de que podemos jejuar, com economia de tempo e de gastos: podemos jejuar no tempo que dedicamos à televisão, sobretudo quando se trata de certos programas que não nos ajudam a sermos melhores cristão.
Jejuemos no uso do telemóvel, a não ser que o usemos por motivos de caridade, ajudando outras pessoas a vencer a solidão e o desânimo.
Podemos ainda jejuar na curiosidade doentia que nos leva a andar sempre com o olhar na vida dos outros, em vez de cuidar das nossas coisas.
Há, sobretudo, um jejum que devemos praticar a todo o custo: evitar o que desagrada a Deus.
«E, quando jejuardes, não mostreis um ar sombrio, […] para que os outros vejam que eles jejuam. […] Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que o teu jejum não seja conhecido dos homens, mas apenas do teu Pai que está pre¬sente no oculto; e o teu Pai, que vê no oculto, há-de recompensar-te.»
• A oração que fazemos. O Mestre Divino não condena a oração em público. Ele mesmo a fez, ao ensinar o Pai nosso, ao dar graças ao Pai por ter revelado certas verdades aos mais pequeninos…
Dissuade-nos de usar a oração diante dos outros como recurso a melhorar a imagem que eles têm de nós.
Não trazemos, acaso, o terço no carro, mas não é verdade que nunca ou quase nunca o rezamos? Que atenção prestamos às orações que rezamos em comum com outras pessoas?
Acresce ainda que não falamos para Deus, ao rezar, com a naturalidade com que falamos para as outras pessoas…
«Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. […].Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te.»
• Sós na presença de Deus. Ninguém deve suportar o peso da nossa vida penitente. Sorrir, participar na vida, melhor do que antes, é o que Deus quere de nós.
O Senhor não nos pede que andemos a escondermo-nos de tudo e de todos para fazer o bem, como se se tratasse de um crime, mas que não procuremos atrair com o que fazemos os louvores das pessoas.
A discrição é uma virtude humana e sobrenatural. Como todas as virtudes, é equilíbrio, de modo que nos leve a comportarmo-nos com naturalidade.
Há uma insistência de Jesus para fazermos as coisas diante do olhar do Pai, e não à procura do olhar das pessoas, para que nos louvem, ou, pelo menos, tenham boa imagem de nós.
A naturalidade leva-nos a fazer o bem com recato, resguardando-nos das vistas profanas. Vencermos grande parte do perigo da vaidade e evitamos elogios e faltas de recta intenção que nos prejudicariam.
«Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo»
• Reconciliemo-nos com Deus. Tudo o que fazemos deve levar-nos a amar cada vez mais a Deus, a aproximarmo-nos d’Ele, pela oração confiada e a viver mais na Sua presença.
Confiemos a Nossa Senhora e a S. José esta Quaresma, pedindo-lhes que seja, para nós, a melhor de sempre.