No 34.º Domingo do Tempo Comum, celebramos a Solenidade de Jesus Cristo, Rei e Senhor do Universo. É o corolário do caminho que percorremos ao longo do ano litúrgico. Depois do percurso feito com Jesus, depois de termos escutado as suas palavras e de termos visto os seus gestos, concluímos, proclamamos e confessamos que Ele é o nosso guia, o nosso mestre, o nosso Senhor, a nossa referência fundamental.
1ª Leitura
A “visão” descrita por Daniel desde 7,1 amplia-se, agora, com o aparecimento de um “filho de homem”. Ao contrário dos “quatro animais” referidos nos versículos anteriores (que vêm do mar – na simbólica judaica, o reino do mal, da desordem, do caos, das forças que se opõe a Deus e à felicidade do homem), esse “filho de homem” aparece “sobre as nuvens do céu” (vers. 13) e tem, portanto, uma origem transcendente: Ele vem de Deus e pertence ao mundo de Deus.
O “filho de homem” recebe de Deus um reino com as dimensões do universo (“todos os povos e nações O serviram” – vers. 14) e um poder que não é limitado pelo tempo, nem pela finitude que caracteriza os reinos humanos (“o seu poder é eterno, não passará jamais, e o seu reino não será destruído” – vers. 14).
Com o anúncio do aparecimento “sobre as nuvens” desse “filho de homem”, o autor do Livro de Daniel anuncia aos crentes perseguidos por Antíoco IV Epífanes a chegada de um tempo em que Deus vai intervir no mundo, a fim de eliminar a crueza, a voracidade, a ferocidade, a violência (os reinos dos “quatro animais”), que oprimem os homens; em contrapartida, Deus vai devolver à história a sua dimensão de “humanidade”, possibilitando que os homens sejam livres e vivam na paz e na tranquilidade.
Para a teologia judaica, esse “filho de homem” que há de chegar para instaurar o “reino de Deus” sobre a terra será o Messias (o “ungido”) de Deus. A sua intervenção irá pôr fim à perseguição dos justos e possibilitar a vitória dos santos sobre as forças da opressão e da morte. É esta esperança que anima os corações dos crentes na época imediatamente anterior à chegada de Jesus.
De acordo com diversos textos neotestamentários, Jesus aplicará esta imagem do “filho de homem que vem sobre as nuvens” à sua própria pessoa. Ao ser interrogado pelo sumo-sacerdote Caifás, Jesus assumirá claramente que é “o Messias, o Filho de Deus bendito”, o “Filho do Homem sentado à direita do Poder”, que virá “sobre as nuvens do céu” (Mc 14,61-62). A catequese cristã primitiva retomará esta imagem para sublinhar a glória de Cristo e o poder soberano de Cristo sobre a história humana (cf. At 7,55-56). Para os cristãos, Cristo é, efetivamente, esse “filho de homem” anunciado em Dn 7, que irá libertar os santos das garras do poder opressor e instaurar o reino definitivo da felicidade e da paz.
2ª Leitura
O leitor começa por apresentar Jesus à comunidade reunida para celebrar o seu Senhor, recorrendo a três títulos cristológicos (vers. 5a) que, provavelmente, faziam parte da catequese da comunidade joânica: “testemunha fiel”, “primogénito dos mortos”, “príncipe dos reis da terra”. Jesus é a “testemunha fiel” porque, com a sua vida, com as suas palavras, com os seus gestos de serviço, de amor e de doação, com a sua entrega até à morte, testemunhou, de forma perfeita, o que Deus queria revelar aos homens e mostrou aos homens o rosto do Deus-amor. Jesus é o “primogénito dos mortos”, porque foi o primeiro a vencer a morte e o pecado e demonstrou-nos, com essa vitória, que quem vive nos caminhos de Deus não será vencido pela morte, mas está destinado à vida eterna. Jesus é o “príncipe dos reis da terra”, porque anunciou e inaugurou um reino novo, de vida e de felicidade sem fim.
Depois de escutar esta proclamação, a comunidade, reconhecida, aclama o seu Senhor e declara a sua concordância com o que foi afirmado sobre Jesus: “àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amen” (vers. 5b-6). Os membros da comunidade cristã têm consciência de que a entrega de Jesus na cruz é expressão do amor sem medida com que Ele ama todos os homens… Porque ama, Jesus libertou os homens do egoísmo e do pecado; porque ama, Jesus convidou os homens a integrar um reino novo, de amor e de paz; porque ama, Jesus associou os homens à sua missão, tornando-os sacerdotes que oferecem a Deus o culto das suas próprias vidas. Jesus inseriu os homens numa dinâmica de vida nova, aproximou-os de Deus, convidou-os a integrar a família de Deus. A comunidade cristã, consciente desta realidade, manifesta no culto o seu reconhecimento.
A “liturgia” prossegue com o leitor a recordar à comunidade reunida que Jesus há de vir ao encontro dos seus, cheio de poder e majestade, a fim de inaugurar uma nova era de vida e de paz sem fim (“ei-l’O que vem entre as nuvens” – vers. 7). A imagem é tirada do texto de Daniel que hoje escutamos como primeira leitura, onde o “filho de homem” que aparece sobre as nuvens está associado à vitória de Deus sobre os reinos e os poderes do mundo (cf. Dn 7,13). Declara-se assim que Jesus é o verdadeiro Senhor da história e que as forças do mal – inclusive as de Domiciano, o imperador que persegue os cristãos – não terão a última palavra. Por outro lado, todos os homens poderão ver o coração trespassado de Cristo (vers. 7a.b) e tomarão consciência de quanto Ele ama os homens. A vitória de Cristo concretizar-se-á através do seu amor, feito dom a todos os homens, sem exceção. A comunidade manifesta a sua adesão a Cristo e às verdades proclamadas respondendo novamente: “sim. Amen” (vers. 7c).
O leitor que dirige a liturgia conclui a sua apresentação de Jesus, definindo-O como o princípio e o fim de todas as coisas (o “alfa” e o “ómega”, a primeira e a última letra do alfabeto grego), Aquele que é Senhor da História e que abarca a totalidade do tempo (“Aquele que é, que era e que há-de vir” – vers. 8). Os cristãos que participam nesta “liturgia” percebem, assim, que podem confiar incondicionalmente nesse Jesus que é a referência fundamental da história humana; e percebem, também, que são convidados a fazer de Jesus o centro das suas vidas.
Evangelho
O interrogatório de Jesus começa com uma pergunta direta, lançada por Pôncio Pilatos (vers. 33b): “Tu és o Rei dos judeus?” Este início de interrogatório revela qual era a acusação apresentada pelas autoridades judaicas contra Jesus: Ele tinha pretensões messiânicas; pretendia restaurar o reino ideal de David e libertar Israel dos opressores. Esta linha de acusação vê em Jesus um agitador político empenhado em mudar o mundo pela força, que fundamenta as suas pretensões e a sua ação no poder das armas e na autoridade dos exércitos. Esta acusação tem fundamento? Jesus aceita-a?
A resposta de Jesus situa as coisas na perspetiva correta. Ele assume-se como o messias que Israel esperava e confirma a sua qualidade de “rei”; no entanto, descarta qualquer identificação com os reis que Pôncio Pilatos conhece e com a forma como eles exercem a realeza (vers. 36). Os reis deste mundo apoiam-se na força das armas e impõem aos outros homens o seu domínio e a sua autoridade; a sua realeza baseia-se no poderio, no autoritarismo, na prepotência, e gera opressão, injustiça e sofrimento… Jesus, em contrapartida, é um prisioneiro indefeso, abandonado pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos, desprezado pelo povo; não procurou ter poder, mas disponibilizou-se para servir todos, especialmente os pobres e os humildes; não se interessou por defender os seus próprios interesses, mas por obedecer à vontade de Deus, seu Pai; não pensou em acumular riquezas, mas em amar os homens até ao dom da própria vida… A sua realeza é de uma outra ordem, da ordem de Deus. É uma realeza que contrapõe o amor ao poder; é uma realeza que toca os corações e que, em vez de produzir morte, produz vida. Jesus é rei e messias, mas não vai impor a ninguém o seu reinado; vai apenas propor aos homens um mundo novo, assente numa lógica de amor, de doação, de entrega, de serviço.
A declaração de Jesus causa estranheza ao “prefeito” romano da Judeia. Pilatos não consegue entender que um rei renuncie ao poder e à força e fundamente a sua realeza no amor e na doação da própria vida. O comentário posto na boca de Pôncio Pilatos – “então, Tu és Rei” (vers. 37a) – parece uma “deixa” de alguém para quem as declarações do seu interlocutor não são claras e que conserva a porta aberta a ulteriores explicações… Na sequência, Jesus confirma a sua realeza e o sentido e do seu reinado.
A realeza de que Jesus Se considera investido por Deus consiste em “dar testemunho da verdade” (vers. 37b). Para o autor do Quarto Evangelho, a “verdade” é a realidade de Deus. Essa “verdade” manifesta-se nos gestos de Jesus, nas suas palavras, nas suas atitudes e, de forma especial, no seu amor vivido até ao extremo do dom da vida. A “verdade” (isto é, a realidade de Deus) é o amor incondicional e sem medida que Deus derrama sobre o homem, e que, uma vez acolhido, conduz à vida verdadeira e definitiva. Essa “verdade” opõe-se à “mentira”, que é o egoísmo, o pecado, a opressão, a injustiça, tudo aquilo que desfeia a vida do homem e o impede de alcançar a vida plena. A “realeza” de Jesus concretiza-se, por um lado, na luta contra o egoísmo e o pecado que escravizam o homem e que o impedem de ser livre e feliz; e, por outro lado, na proposição de uma vida feita amor e entrega a Deus e aos irmãos. Esta meta não se alcança através de uma lógica de poder e de força (que só multiplicam as cadeias de mentira, de injustiça, de violência); mas alcança-se através do amor, da partilha, do serviço simples e humilde em favor dos irmãos. É esse “reino” que Jesus veio propor; é a esse “reino” de amor que Ele preside.
A proposta de Jesus tende a provocar uma resposta do homem. Quem é de Deus e pretende viver de acordo com a realidade de Deus, escuta a voz de Jesus; compromete-se a segui-l’O, renuncia ao egoísmo e faz da sua vida um dom de amor a Deus e aos irmãos (vers. 37c). Passa, então, a integrar a comunidade do “Reino de Deus”.