Há muitas maneiras de explicar o que é a Eucaristia. Paulo escolhe um: conta – como vimos – a sua instituição, durante a Última Ceia. Lucas escolhe outro: pega num episódio da vida de Jesus – o da multiplicação dos pães – e lê-o na óptica eucarística. Isto é, utiliza-o para dar a entender aos cristãos das suas comunidades o que significa o gesto de partir o pão que eles repetem regularmente, todas as semanas, no dia do Senhor.
Se o trecho do Evangelho de hoje for lido como a crónica fiel de um acto, embatemos numa série de dificuldades: não se entende o que foram fazer para um local deserto cinco mil homens, e nem sequer se sabe bem de onde podem ter vindo. É estranho que também os peixes sejam paridos e seria preciso explicar de onde saem os doze cestos para os restos, terão sido trazidos vazios pelas pessoas? Depois está escuro quando tem início a refeição; como terão feito os doze, às escuras, para pôr em ordem toda aquela gente e distribuir o pão e o peixe?…
É evidente que não estamos perante uma reportagem e não faz sentido perguntarmo-nos como se terão desenrolado exatamente os factos, porque é difícil determiná-lo.
Sobre um acontecimento da vida de Jesus, o evangelista construiu uma reflexão teológica e a nós, mais do que reconstituir o que aconteceu, interessa entender qual é a mensagem que ele quer transmitir.
A primeira chave de leitura que inserimos é a do Antigo Testamento.
Os cristãos das comunidades de Lucas estavam habituados à linguagem bíblica e colhiam imediatamente as alusões – que a nós podem escapar – a factos, textos, expressões e personagens do Antigo Testamento.
O relato da distribuição dos pães recordava-lhes:
– O relato do maná, o alimento dado de forma prodigiosa por Deus ao seu povo no deserto. Também o pão dado por Jesus vem do céu;
– A profecia feita por Moisés: «O Senhor, teu Deus, suscitará no meio de vós, dentre os teus irmãos, um profeta como eu». Jesus que repete um dos sinais realizados por Moisés, é, portanto, o profeta esperado;
-As palavras de Isaías: «Porque gastais o vosso dinheiro naquilo que não alimenta? E o vosso salário naquilo que não pode saciar-vos? Se me escutardes, havereis de comer do melhor, e saborear pratos deliciosos».
– Por fim recorda a multiplicação dos pães operada por Eliseu. O milagre feito por Jesus parece ser uma fotocópia deste, ampliada.
Estas referências ao Antigo Testamento devem ser lembradas porque é a elas que Lucas pretende aludir, mas ele refere-se também à celebração da Eucaristia, da forma como se desenrola nas suas comunidades.
Jesus não nos deixou uma estátua sua, uma fotografia, uma relíquia. Quis continuar a estar presente entre os seus discípulos como alimento.
O alimento não se coloca na mesa para ser contemplado, mas para ser comido.
Os cristãos que vão à Missa, mas não vão à comunhão, devem tomar consciência de que não estão a participar plenamente da celebração eucarística.
O alimento torna-se parte de nós mesmos. Comendo o corpo e bebendo o sangue de Cristo aceitamos o seu convite a que nos identificamos com Ele. Dizemos a Deus e à comunidade que queremos formar com Cristo um só corpo, desejamos assimilar o seu gesto de amor e queremos doar a nossa vida aos irmãos, como Ele fez.
Não fazemos sozinhos esta escolha empenhativa, mas juntamente com toda uma comunidade. A Eucaristia não é um alimento que se consome em solidão: é pão partido e partilhado entre irmãos.
Não se pode conceber que, por um lado, seja feito o gesto que indica unidade, partilha, igualdade, doação recíproca e, por outro, seja tolerado o perpetuar-se de contrastes, arrogância, ódios, ciúmes, açambarcamento de bens, prepotência. Uma comunidade que celebra o rito do «partir do pão» nestas condições indignas come e bebe – como adverte Paulo – a própria condenação. É uma comunidade que transforma o sacramento em mentira.
