Marcos inseriu as exigências mais difíceis da moral cristã na secção central do seu Evangelho, não antes, de modo que possam ser entendidas apenas por quem fez a escolha de seguir Cristo através do dom da sua vida. No domingo passado, Jesus falou da indissolubilidade do matrimónio, hoje põe os discípulos perante a necessidade de renunciar a todos os bens para o seguirem.
Na primeira parte do trecho, entra em cena, correndo, um jovem rico, que se lança de joelhos diante de Jesus e pergunta: «Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?»
Da continuação do relato ficamos a saber que é uma pessoa reta e que está consciente de ter vivido uma vida irrepreensível. E, no entanto, vislumbra-se nele uma inquietação profunda, uma pena íntima e indefinida que o faz sofrer, quase como se fosse uma enfermidade espiritual. Procura Jesus porque intuiu que somente de um mestre insigne como Ele pode vir a palavra que comunica serenidade e esperança.
Também está preparado do ponto de vista teológico: não fala de «conquistar, merecer, ter direito», mas de alcançar a vida eterna. O termo utilizado poderia também ser traduzido por «herdar». A herança não é ganha, não se recebe como um prémio, como o salário de um trabalho, mas é dada gratuitamente. Como qualquer outro israelita piedoso, também ele está consciente que de Deus tudo se recebe como «herança»: a terra, a lei, a bênção, as promessas, o reino de Deus, e o próprio Senhor, herança de Israel. Nada é concedido pelas boas ações. Tudo é dom.
Apesar de ter entendido que a vida eterna é uma herança, pergunta a Jesus o que deve fazer ainda. Dá-se conta que não só deve esperar, mas que também é preciso estabelecer a disposição certa, porque o Senhor não força ninguém a acolher o seu dom.
A segunda parte do trecho refere a consideração de Jesus acerca do perigo da riqueza. É o mais grave impedimento para quem se quer tornar um discípulo. Possui a força sedutora de um deus porque, sempre que se recorre a ela, responde concedendo o que se lhe pede. Constitui um obstáculo quase inultrapassável para quem quer entrar no Reino dos Céus. «É mais fácil garante Jesus – passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus».
Na última parte, é feita a lista de coisas das quais o discípulo é chamado a desapegar-se. Em relação a esta dupla lista, posta primeiro na boca de Pedro e depois na de Jesus, notamos antes de mais a presença inesperada dos familiares entre os bens a que é preciso renunciar.
É fácil confundir o amor com o apego morboso. Há um egoísmo pessoal, mas há também um egoísmo mais subtil, que pode encapotar-se de virtude, e que é o egoísmo familiar. Quem pensa só em si, na sua própria esposa e nos próprios filhos continua a ser um egoísta, é incapaz de olhar para além do limiar da própria casa.
Não pode ser feliz, porque atrofiou o seu coração reprimido o amor universal para o qual foi criado.