Ontem ouvi a morte a chorar

Na sala de urgências estavam três senhoras idosas, uma a dormir numa maca, outra sentada ao lado do marido que a acompanhava em silêncio na luta contra a natureza. A terceira era a morte e pairava naquele local sem saber o que fazer. Também lá estava eu.

Acabou por se sentar e chorou. Em paz. Creio que todos a víamos, mas ninguém ousou dirigir-lhe a palavra. Algum tempo depois, a senhora que estava deitada acordou e pediu à morte para que não se aproximasse dela.

“Quero viver mais” – disse. “Detesto esta condição de doença, porque amo a vida. Porque a vida que me resta é mais bela do que toda a doença que a tenta destruir. A alma que me sustenta ainda quer fazer o bem a outros. Aos da minha família, por exemplo, que, de tão distraídos, ainda não perceberam sequer que estão vivos e que isso é o maior dom que podem ter e ser. Quem não desiste de enfrentar a maldade nunca perde. Nunca.”

A morte escutou cada uma daquelas palavras, no meio de uma respiração cansada, mas decidida. Chorava ao mesmo tempo que admirava aquela mulher.

Olhou então para o casal e admirou o seu amor concreto e firme. Ela estava doente e ele estava ali com ela. Presente. Em silêncio. Não era médico, mas cumpria a missão de que a solidão não tomasse conta do coração da mulher que sempre amou, que amava e que amaria até depois do fim. Um dia tinha escolhido ser assim, e era um homem de palavra.

A mulher, sentada, de cabeça um pouco reclinada, olhos serenos e olhar calmo, estava atenta ao que se passava e resolveu dizer enquanto suspirava de forma muito suave:

“Hoje também não! Cada dia do amor é um dia diferente. Eu quero viver. Apesar de tudo. Porque amo a minha família, mesmo aqueles que preferem que eu morra como forma de acabar com este sofrimento. As dores são parte da vida. Não há vida sem dor. E gostava que aprendessem a viver melhor, tirando partido de tudo, até dos seus sofrimentos. Passam a vida em rotinas e tédios sem fim, sem sentido. Acham a vida uma porcaria porque a desprezam ao ponto de desperdiçarem dias, meses e anos inteiros… quando bastava parar um pouco e apreciar o mundo que está à sua volta e aquele outro que há dentro do seu peito.”

A morte ouviu tudo como se fosse uma melodia belíssima de música clássica. As lágrimas caíam-lhe pela face, evaporando-se antes que pudessem tocar o chão. Sorria ao mesmo tempo, pela sabedoria daquela senhora que, com o corpo a ceder, mantinha o seu espírito fora dessa guerra que não era dele. A morte não parava de chorar…

O marido esperou que a morte o olhasse para declarar: “Leva-me a mim. Gostava de dar a vida por ela e bem sei que esperarei por ela do outro lado, mas sei também que isso é um egoísmo e uma vaidade. Faz o que quiseres, na certeza de que nada podes contra o amor. Não sei bem quem és, mas sei que cumpres uma das funções mais difíceis do mundo. Separas gente que se há de voltar a ver, mas como nem sempre acredita nisso, sofre… Tu, amiga morte, levas tantos para o céu. Com um critério que nem tu própria deves conhecer… mas cumpres. Admiro-te.”

Aquelas palavras iluminaram a sala, mas fizeram a morte chorar de forma ainda mais profunda.

Foi então a minha vez de dizer o que sentia, tanto à morte como aos outros presentes, mas nada me saía por estar tão surpreso com o que estava a contemplar e a aprender. Por um momento, fiz-me amigo e filho da senhora da maca, depois, do casal… e até da morte, cujo sofrimento me pareceu convocar o melhor de mim…

Talvez por inconsciência, só depois de muito tempo pensei que a morte pudesse estar ali para me levar… e ainda o não tinha acabado de pensar, já a morte me olhou e disse: “Não. Descansa. Estou aqui por causa de mim mesma”.

E começou, então, um sublime lamento:

“Sou a morte, aquela mesma morte que num momento tem de vos levar para um outro mundo de que este faz parte, mas esse instante não é hoje. Depois.

O que mais me dói é tanto desamor na vida e pela vida. Tanta gente capaz de desistir de si e do valor que tem para os outros. Passam o tempo a acumular coisas que hão de ficar por cá, nas mãos de alguém que também um dia as terá de deixar, tudo isto em vez de se esforçarem por serem mais e melhores, por inspirarem outros a viver de forma plena. Através de uma vida onde ser é mil vezes mais importante do que todos os teres. Onde o bem é mais importante que todos os bens.

Toda a gente fala da paz e procura-a como se fosse um prémio para os primeiros a conseguirem alcançá-la. Não. A paz é um privilégio para os que escolhem os últimos lugares. Os humildes que sabem que entrar nas rivalidades deste mundo é perder.

Custa-me chamarem por mim. Não sabem que basta apenas um passo na direção certa, que até pode ser o último que dão, para que a sua vida eterna seja outra…

Aquilo de que importa ter medo é de uma vida que se escolheu viver mal. Só.

Um gesto corajoso de amor é tudo quanto basta.

E, lembrem-se, até pode ser o último.”

Assim que a morte acabou de falar descansou no chão como quem, à noite, quer contemplar o céu estrelado.

A brisa suave da vida entrou pela sala, veio beijar-nos a todos e abraçar a morte.

 

Fonte:https://agencia.ecclesia.pt

Autor: José Luís Nunes Martins

Check Also

Nota Pastoral na comemoração dos cinquenta anos do “25 de Abril”

1. Na comemoração do cinquentenário da Revolução de 25 de Abril de 1974 cabe aos …

Sahifa Theme License is not validated, Go to the theme options page to validate the license, You need a single license for each domain name.