A PROCLAMAÇÃO DO EVANGELHO NA MISSA

– Pai, porque nos levantamos quando se lê o Evangelho? – perguntou um miúdo de uns sete ou oito anos.

– Porque é Jesus quem vai falar – foi a resposta do Pai.

Não esperava uma resposta assim e, confesso, pensei que o rapaz não a entendesse, que mostrasse admiração ou incompreensão, mas não, ficou pensativo a meditar. Por fim, acrescentou:

– E é por isso que vão as velas a acompanhar o padre e cantamos o Aleluia?

Ao que o pai concordou e continuou um pouco a explicação.

Este pequeno episódio familiar ajuda-me a perceber com ainda mais profundidade que, quando se vive a Eucaristia como um encontro com Cristo percebem-se as subtilezas rituais, os simbolismos próprios da liturgia. Tudo bate certo. Por isso, pai e filho olhavam com extrema naturalidade para o facto de se levantarem naquele que é o clímax da Liturgia da Palavra: «a assembleia dos fiéis acolhe e saúda o Senhor, que lhe vai falar no Evangelho».[1] Fala na primeira pessoa, «não através dos seus arautos, os profetas e os apóstolos (primeira e segunda leitura), mas através do seu Filho, o Verbo feito carne. É o próprio Rei que sai ao encontro dos seus súbditos».[2] Por isso, S. Agostinho dizia: «O Evangelho é a boca de Cristo: está sentado no Céu, mas não deixa de falar na terra».[3]

Levantar-se nesse momento, pôr-se de pé, não é apenas um ato de cerimónia ou de respeito, simplesmente. É um rito que manifesta a nossa fé. «Levantar-se, na simbologia gestual cristã, é erguer-se, tal como o paralítico da enxerga, que Jesus fez erguer sobre os pés (cfr. Lc 5, 25). É também a atitude de Cristo ressuscitado: «Jesus pôs-se de pé no meio deles» (Jo 20, 19). Uma assembleia de pé é uma assembleia de ressuscitados: acolhe a vinda de Jesus ressuscitado no meio dos seus irmãos que Ele ressuscita.»[4]

Levantamo-nos mas, como dizia aquela criança, também cantamos. Com o canto e a nossa atitude corporal, manifestamos a nossa fé. Somos conscientes da presença de Jesus e preparamo-nos para escutar a sua Palavra. Daí que a Instrução Geral do Missal Romano destaque o facto de a aclamação do evangelho constituir um rito ou um ato com valor por si próprio. [5]

Porém, a liturgia não fica por aqui. Porque razão é que o Evangelho é sempre proclamado por um ministro ordenado? Não é um sinal claro de que quem nos fala é o próprio Jesus? O cardeal Lustiger afirmava que o ministro «Configurado com Cristo-Cabeça, pelo sacramento da Ordem, testemunha, perante a assembleia, que esta Palavra não é uma palavra vulgar, mas que, pela sua voz, Cristo fala à sua Igreja».[6]

J. Silvestre[7] assinala ainda o facto de o Evangelho receber mostras de veneração específicas (nas missas solenes o Evangeliário (livro dos evangelhos) vai na procissão levantado, como que exposto à veneração dos fiéis e é depois colocado sobre o altar, para ser levado, mais tarde, em procissão até ao ambão. O Evangeliário é acompanhado por velas e pelo incenso e, no momento da proclamação do Evangelho, é incensado).

Gostaria de comentar ainda três pequenos ritos que enriquecem este momento e sublinham, de alguma maneira, esta presença de Cristo que fala aos fiéis.

Munda cor meum… Purifica o meu coração

Enquanto se canta o aleluia ou um outro cântico, o sacerdote, profundamente inclinado diante do altar, de mãos juntas, diz em silêncio: «Munda cor meum ac lábia mea, omnipotens Deus, ut sanctum Evangelium tuum digne valeam nuntiare» (Deus todo-poderoso, purificai o meu coração e os meus lábios, para que eu anuncie dignamente o vosso santo Evangelho).[8]

Porquê este gesto em silêncio? Porquê este rito restringido apenas ao sacerdote que, quando não se canta o aleluia constituirá um momento de silêncio que parece interromper a celebração? A atitude de profunda humildade, certamente, esclarecerá os fiéis. Perceberão que o sacerdote está prestes a realizar algo de sagrado. Deus vai atuar através dele e este pede a ajuda do Céu. Efetivamente, aquelas orações convidam o sacerdote a personalizar a sua tarefa, a entregar-se ao Senhor, também com o seu próprio eu. Consciente da sua própria indignidade, inclina-se diante do altar e suplica ao Senhor que purifique o seu coração e os seus lábios. O silêncio e a solenidade do rito mostram aos fiéis que algo de grandioso está prestes a acontecer.

O sinal da cruz sobre o Evangeliário, a testa, os lábios e o peito

Porquê o sinal da cruz sobre o livro dos evangelhos?

Em primeiro lugar pela estreita ligação entre o mistério da Cruz de Cristo e o Evangelho. Depois, pela ligação do Evangelho (e, portanto, da Cruz) com a nossa vida. Vejamos, em pormenor este pequeno rito:

O sacerdote acabou de saudar o povo: «O Senhor esteja convosco». O povo respondeu: «Ele está no meio de nós». É então que traça uma cruz sobre o evangelho, ao mesmo tempo que anuncia o Evangelho e, enquanto fala, faz uma cruz sobre a testa, sobre os lábios e sobre o peito.

Parece claro que se quer transmitir «o desejo de nos apropriarmos da Verdade do Evangelho, de tal modo que informe plenamente os nossos pensamentos, as nossas palavras e as nossas ações». [9] Com este gesto queremos expressar o nosso acolhimento à Palavra que se vai proclamar, fazemos uma profissão de fé: sabemos que é Cristo quem vai falar e queremos que tome posse de nós de nos abençoe.

Per evangelica dicta deleantur nostra delicta

Uma vez terminada a proclamação do evangelho o ministro diz a aclamação: Palavra da salvação. Todos respondem: Glória a vós Senhor. Então, o ministro beija o livro, dizendo em silêncio: Per evangelica dicta deleantur nostra delicta (Por este santo Evangelho, perdoai-nos, Senhor).

Embora em voz baixa a oração é pronunciada em plural. Assim, o ministro não fala apenas em nome próprio, mas de toda a assembleia.

Porquê este pedido de perdão? Se no início traçamos a cruz redentora sobre o livro e sobre nós, e relacionamos o Evangelho com a Cruz, não será natural que, no final, associemos o resultado da leitura do Evangelho ao efeito da Cruz redentora? Pela leitura e assimilação do Evangelho na nossa vida seremos salvos, carregaremos com a nossa cruz de cada dia,[10] guardaremos a Palavra e o Pai virá a nós e o nosso Deus uno e trino fará em nós a sua morada.[11]

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] IGMR n. 62.

[2] J. ECHEVARRÍA, Vivir la Santa Misa, Rialp 2010, p. 68.

[3] S. AGOSTINHO, Sermão 85, 1 (PL 38, 520)

[4] LUSTIGER, J-M. A Missa, Editorial A. O., 2003, p. 87.

[5] IGMR n. 62

[6] LUSTIGER, J-M. A Missa, Editorial A. O., 2003, p. 88.

[7] Cfr. SILVESTRE, J.J., La Santa Misa, el rito de la celebración eucarística, RIALP, 2015, p. 95.

[8] IGMR n. 132.

[9] J. ECHEVARRÍA, Vivir la Santa Misa, Rialp 2010, p. 68.

[10] Cfr. Mt 16, 24; Mc 8, 34.

[11] Cfr. Jo 14, 23.

 

Fonte: Revista Celebração Litúrgica 

Edição nº 5 | Tempo Comum | Agosto/Setembro 2017

Autor: P. Pedro Boléo Tomé

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