A LITURGIA CATÓLICA DAS ORIGENS AO CONCÍLIO DE TRENTO

Nota introdutória

O texto aqui publicado começou por ser uma conferência proferida pelo Autor, no Curso promovido pela Universidade Católica, em Lisboa, sobre A Liturgia como Lugar de encontro, a convite do capelão da UCP P. Miguel Cabedo e Vasconcelos.

Como declara com simplicidade, o Autor não é teólogo nem liturgista, mas doutor em Filosofia.

O conferente esclareceu ainda a sua preferência por um trabalho feito em espírito de diálogo: “É aliás neste espírito que se insere esta minha intervenção, que não tem a pretensão de ser uma conferência, nem uma aula, mas uma conversa, talvez a uma só voz, mas que espero que não seja em nenhum momento um enfadonho monólogo. Os anos que passei desse lado da barricada, primeiro como aluno de Direito, e depois como estudante de Filosofia e Teologia, foram suficientes para preferir, como método de ensino, o estilo dialógico, aliás segundo a tradição da dialéctica de Aristóteles[2].

Esclareceu ainda: “devo ainda esclarecer que me foi dado um tema certamente ambicioso: nada mais nem nada menos do que mil e quinhentos anos de história da liturgia católica! Embora o título apelasse à brevidade desta minha comunicação – “Breve História da Liturgia: das origens ao Concílio de Trento”[3] – na verdade é materialmente impossível condensar quinze séculos de história do pensamento cristão e da prática litúrgica em tão pouco tempo. Por isso, peço desde já que façam a caridade de desculpar as muitas lacunas desta incursão, ‘a vol d’oiseau’, pela história da liturgia católica, desde o seu início e até ao Concílio de Trento.”

Finalmente, define-se nestes parâmetros: “Muito prezando, como não podia deixar de ser, a tradição litúrgica, não sou, nem nunca fui, tradicionalista, precisamente por entender que é salutar que a liturgia da Igreja, longe de estar fossilizada num modelo histórico que, por mais virtuoso que seja, estará sempre datado, permaneça sempre sensível aos sinais dos tempos, na medida em que estes são a voz do Espírito à Igreja de cada tempo e lugar.

Mas também não sou nenhum fundamentalista da liturgia conciliar e pós-conciliar, cujos méritos reconheço e na qual, diariamente, celebro o mistério eucarístico, em comunhão com o Santo Padre, o Papa Francisco, o Senhor Patriarca e o colégio episcopal, bem como todos os presbíteros, diáconos, religiosos e leigos unidos a Pedro na Igreja romana, católica e apostólica. Se amanhã, o Espírito de novo falar à Igreja e inspirar uma nova liturgia ou, melhor dizendo, uma nova reforma litúrgica, também nesse desenvolvimento teológico e cultual procurarei ser, como até à data tenho sido sempre, graças a Deus, fiel à Igreja e aos seus legítimos pastores.”[4]

A liturgia, opus Dei.

“Originariamente, a palavra ‘liturgia’ significa ‘obra pública’, ‘serviço por parte de/e em favor do povo’. Na tradição cristã, quer dizer que o povo de Deus toma parte na ‘obra de Deus’. Pela liturgia, Cristo nosso Redentor e Sumo-Sacerdote, continua na sua Igreja, com ela e por ela, a obra da nossa salvação”[5].

Desta breve definição interessa sobretudo sublinhar o carácter cristocêntrico da liturgia eclesial que, mais do que iniciativa do povo de Deus, é acção de Cristo. Diga-se, contudo, do Cristo total: Cabeça em Jesus Cristo, nosso divino Redentor e naqueles que com Ele estão configurados pelo Sacramento da Ordem, que os capacita para serem Ele mesmo – alter Christus, ipse Christus – nas celebrações sacramentais e não só, e Corpo em todos os membros da sua Igreja. Deste corpo também fazem parte, de um modo certamente misterioso, aqueles que pertencem, de uma forma não institucional, à comunhão dos santos e, portanto, mesmo sem terem sido formalmente baptizados, são também, pela acção da graça, cristãos, pois também por seu intermédio Cristo realiza a sua acção salvífica.

Seria interessante, mas certamente descabido nesta breve dissertação histórica, reflectir sobre o modo como os fiéis cristãos realizam o seu sacerdócio comum, unidos a Cristo no seu modo secular de proceder na família, no trabalho e na vida social, pois também estas realidades, como ensina o Concílio Vaticano II, têm uma dimensão espiritual e, nesse sentido, são santificáveis precisamente por aqueles que são chamados à plenitude da caridade cristã no mundo e através do próprio mundo. Neste sentido, a distinção entre realidades sagradas e profanas já não faz sentido para quem reconhece esta espiritualidade secular ou laical: o próprio mundo se converte em altar do culto devido a Deus e todas as coisas são matéria de santificação e de apostolado. Neste sentido mais radical, já São Josemaria Escrivá dizia, muitos anos antes do Vaticano II: “Para um apóstolo moderno, uma hora de estudo é uma hora de oração”[6]. Ou seja, também o trabalho, quando realizado com perfeição humana e sentido sobrenatural, se converte em liturgia, em acção santificadora e redentora, mediante a qual o estudante exercita especificamente a vertente sacerdotal da sua vocação baptismal.

Se é verdade esta acepção mais global da liturgia, também é certo que uma consideração excessivamente ampla do conceito, confundindo-o com tudo o que é, ou é susceptível de poder ser, obra de Deus, faria tão alargado o âmbito desta matéria que seria, praticamente, inabarcável. Por isso, sem negar a amplitude inicialmente sugerida, o Catecismo da Igreja Católica identifica a liturgia com a “celebração do culto divino”[7]. É este também o seu sentido popular, ou vulgar: quando alguém se refere a uma liturgia, geralmente está a mencionar uma celebração eucarística ou sacramental, que há-de ser caridade em acto, serviço em ordem à santificação dos homens e, nesse sentido, exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo[8].

Diz o Concílio Vaticano II: “Com razão se considera a liturgia como o exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo. Nela, mediante sinais sensíveis e no modo próprio de cada qual significa-se e realiza-se a santificação dos homens e é exercido o culto público integral pelo corpo Místico de Cristo, isto é pela cabeça e pelos membros. Portanto, qualquer celebração litúrgica, enquanto obra de Cristo Sacerdote e do seu corpo que é a Igreja, é acção sagrada por excelência e nenhuma outra acção da Igreja a iguala em eficácia com o mesmo título e no mesmo grau”[9].

A esta definição conciliar, certamente fundamental, interessa sobretudo destacar o carácter material e espiritual da liturgia eclesial, de modo análogo a como, em relação aos sacramentos, a escolástica distingue uma matéria e forma próprias. Com efeito, à liturgia são essenciais os “sinais sensíveis”, ou seja, cognoscíveis pelos sentidos externos, bem como o seu modo próprio de significar e realizar o mistério da salvação. Neste sentido, a acção litúrgica tem um carácter eminentemente eclesial, ou social, que obriga portanto ao estabelecimento de uma disciplina própria, pela autoridade eclesial competente. Mas, se é verdade que há alguma margem de discrecionalidade na instituição das regras a observar na acção cultual da Igreja, essas normas não são absolutamente arbitrárias, porque o modo como realizam o mistério da salvação deve ser congruente com o significado próprio das matérias para o efeito utilizadas. Neste sentido, o uso da água no baptismo corresponde ao significado próprio desse elemento natural, que é especialmente apto para significar essa acção sacramental, que tem por efeito próprio, na ordem da salvação, a absolvição de todos os pecados, nomeadamente o original.

Que a Eucaristia se confecione com o pão e o vinho também não é por acaso, nem apenas porque o Senhor assim fez na última Ceia, mas também porque, com esses bens materiais, muito aptamente se significa o carácter nutricional deste sacramento que, ao modo do alimento, fortalece o organismo espiritual dos filhos de Deus na sua Igreja.

Esta linguagem simbólica não é absolutamente universal e, daí, a necessidade de a Igreja, que é católica por definição, saber manter a unidade da sua liturgia, que é também a unidade da sua fé, na sã diversidade dos ritos que, segundo cada cultura, melhor expressam o seu significado. Esta tensão entre o universal e o particular obrigaria, numa abordagem histórica, a descrever não apenas a evolução da liturgia católica romana, mas de todas as liturgias que, ao longo dos séculos, foram validamente exercidas pelos cristãos, como expressão e realização do mistério da sua salvação.

Se são muitas as linguagens que operam as relações sociais, também no tempo há certamente uma evolução no significado das palavras e gestos, bem como na sua aptidão para expressar uma realidade transcendente.

Por exemplo, o beijo era um cumprimento tradicional entre os judeus e, por isso, também os primeiros cristãos o adoptaram como saudação da paz. Hoje, se nas nossas assembleias eucarísticas, se se exigisse aos fiéis que beijassem na face as pessoas que têm a seu lado, como sinal daquela caridade que é indispensável para a frutuosa recepção da Sagrada Eucaristia, essa indicação, embora liturgicamente coerente com a tradição eclesial, seria para muitos, certamente, bastante constrangedora. Note-se que, enquanto no Oriente Médio, ou na Rússia, é perfeitamente normal esse cumprimento, tal já não acontece no Ocidente, onde só seria aceitável uma tal intimidade entre esposos ou pais e filhos. Neste sentido, uma alteração do sinal sensível não deve ser vista sempre como um desrespeito pela tradição, como pretendem certos fundamentalistas, pois pode ser uma reforma que aproxima a linguagem litúrgica do seu primitivo sentido. Neste sentido, os tradicionalistas deveriam ser, então, os reformistas, e não os imobilistas…

Com todo o respeito pelos que pensam de outra forma, permitam-me que de novo esclareça que qualquer atitude ahistórica me parece, à partida, pouco razoável. A Igreja é certamente depositária de uma revelação divina que é intemporal, mas deve realizá-la em cada tempo e lugar e, por isso, não faz sentido que não se admita uma salutar evolução na continuidade. Até porque o tradicionalismo puro e duro obrigaria, em coerência, a manter as celebrações judaicas tal como foram realizadas por Cristo que, como é sabido, cumpria com todas as obrigações cultuais dos judeus, bem como a sua própria língua e, já agora, o seu modo de se pentear, de se calçar e de trajar. Se admitimos que a reforma litúrgica de um qualquer papa foi positiva para a Igreja, embora também tivesse sido moderna no seu tempo e talvez encontrasse alguma oposição pelos que então eram favoráveis à liturgia anterior, não tem sentido pretender que uma qualquer reforma litúrgica é definitiva, porque todas imanam da mesma autoridade suprema, qual é a do Santo Padre, e todas, decerto, introduzem algum progresso ou desenvolvimento em relação aos ritos anteriores que, mesmo sendo excelentes, não eram ainda perfeitos.

Definitiva e irreformável só é a liturgia celeste, que o Pai celebra com o Filho na unidade do Espírito Santo, em união com a Igreja triunfante dos anjos e santos, para louvor e glória de Deus e salvação dos homens.

 

Fonte: Celebração Litúrgica 

Edição nº 3 | Tempo Pascal | Abril/Maio 2019

Autor: Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada

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