Desfocados

Julgo que a maioria dos que me lêem ainda se recorda do “velho” método de fotografar. Pode mesmo dar-se o caso de conservar a câmara analógica, como forma de agradecer a eternização de importantes momentos e manifestações de afecto. Lembra-se também, por certo, do cuidado posto em cada fotografia e do exigente critério que antecedia cada flash: “Vale a pena gastar rolo?”; “Ponham-se lá direitos, que eu vou contar até três!”; “A Fernanda mexeu-se e lá está estragada mais uma…”.

Quando se tratava de mudar o rolo, havia mil cuidados; na hora de passar pela revelação, o suspense era mais que muito: quantas fotos teriam ficado realmente bem?.. O desgosto era mais que muito quando se recebia o relatório oral das tremidas, das desfocadas, das queimadas ou das escuras…A ponto de estarmos dispostos a pagar mais alguma coisa, se nos apresentavam a eventualidade de arriscar uma revelação melhorada.

Veio o digital e aliviou-nos. Mas tanto, que nos descuidou, permitindo banalizar o gesto de fotografar esquecendo a arte de escrever com luz.

Hoje aponta-se a câmara ou o telemóvel a (quase) tudo o que mexe ou atrai a esquina do olhar. De facto, de imediato se pode apagar, repetir, corrigir. O cartão de memória facilmente se descarrega para uma pasta qualquer, onde a qualidade e o lixo esperam, iguais em dignidade!, o tempo de uma criteriosa selecção — que até pode nem ser feita, porque alguns apenas dão à mania chinesa/japonesa da multiplicação. Fotografar parece ser até uma forma de preguiça que nos deixa passar levianamente por sítios ou pessoas, a rever no sofá, quando houver tempo. A democratização da fotografia redundou, assim, na banalização e descuido: fotografamos sem exigência nem foco!…

Importa, entretanto, admitir que esta banalidade do olhar não está simplesmente na facilidade da câmara: entrou e mora em nós.

Hoje estamos, importa admiti-lo, demasiadas vezes desfocados do essencial. Perseguidores de instantes, parecemos incapazes da arte de saborear, compreender e explicar. Instalamo-nos confortavelmente na facilidade do “delete”, que não implica custos nem deixa remorsos. “Partimos para outra”, como sói dizer-se – vivendo constantemente mais à frente que o hoje!…

Na política, por exemplo, os problemas adiam-se para as eleições que se avizinham — ao mesmo tempo que estas se descuidam, de imediato, em nome das que hão-de vir. As reuniões improvisam-se e multiplicam-se, porque não assentam debates nem acentuam o que é determinante resolver, ocupando-se a abanar rama das coisas. Nas conversas da família, o sabor da presença é silenciado pela incomunicação, ou azedado pelas discordâncias do que pode vir a ser. Até na Igreja, quando falta beber o sumo de um concílio de há 50 anos, queremos já outro…que outros deixarão, porventura, incumprido.

Mas voltemos à fotografia, como metáfora: estamos, diariamente, a abusar da facilidade. O coração e o pensamento parecem alheios ao registo. Depois, espantamo-nos com as surpresas. Estamos superficiais e desfocados!…

Atraídos pelo desejo de consenso, descuramos o debate e parecemos ignorar que o acordo por omissão não é habilidade mas, na maioria das vezes, debilidade.

Eu creio profundamente na bondade e na misericórdia. Mas gosto de as ver servidas por uma voz que, na turma em desordem nas últimas filas, não se limite a um pedido discreto aos silenciosos alunos da frente: «Vá lá, meninos, portem-se bem!»

João Aguiar Campos,

Secretariado Nacional das Comunicações Sociais

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